Um conto de Thainá Gonçalves
Ela perdeu o emprego no início da quarentena, desde então presta atenção na beleza que a rodeia e também no seu antônimo. Mantém a casa arrumada, impecável. O marido fanfarrão não perdeu o emprego, inclusive, nem acredita na pandemia nem no vírus nem no número de mortos, acredita no presidente. Faz churrasco com os amigos do trabalho na casa do Marquinho, quase todo final de semana. Ela não vai, se recusa a ir.
Tem sido assim, ele acorda cedo, um pouco mais cedo, transa com o corpo imóvel dela sob seu, a mente dela está sempre longe, às vezes na lista de compras, às vezes na preocupação com a mãe, às vezes na voz da vizinha; então, ele se levanta, toma banho e vai para o trabalho. Ela levanta, abre as janelas de toda a casa, toma uma xícara de café requentado do dia anterior, come um pão feito na frigideira e começa a arrumação, a limpeza do que já está limpo. Começa pela sala, é seu lugar favorito na casa, se identifica com um rosto triste que uma infiltração formou próximo ao sofá. Arruma o quarto, os três, mesmo os que não estão sendo utilizados nem serão (eles tentam ter filhos há três anos, mas, em segredo, ela jamais parou com o anticoncepcional). Limpa a cozinha, organiza os armários (de novo) de novo e de novo. Limpa o banheiro do chão ao teto, torna o box invisível.
A área não é seu lugar favorito, mas é o seu momento favorito. Faz uma pausa, liga para a mãe para ouvir o que já sabe, a mãe também não acredita na pandemia, também não para em casa, a mãe tem setenta anos. Geralmente, ao fim da ligação, ela faz uma prece à nossa Senhora Aparecida pela saúde da mãe. Volta à faxina. Coloca as roupas na máquina de lavar e se senta num toco de árvore ao lado do tanque para ouvir a vizinha cantar. É o único momento do dia em que se sente viva, em que sai do automático. Ela canta Belchior, Raul Seixas e Cássia Eller, um repertório limitado das mesmas canções de sempre, mas para a solitária Marília, um show particular.
Ela fica ali, de um lado o som mecânico das roupas girando, do outro a voz melódica da vizinha. Todo dia os mesmos pensamentos “o que será que ela faz enquanto canta?”, “será quantos anos tem?”, “como será a sua aparência?”, “será que sabe que a escuto?”. Todo dia as mesmas perguntas. Um dia quando estava indo fazer compra, viu o portão da casa do lado aberto, dentro do lote uma casa pequena, velha, com tintura rosa-claro descascada, rodeada por terra batida, um pé de manga aqui, outro ali, o lote era grande; ela esticou o pescoço, curiosa, procurando pela dona da voz, só se deparou com um enorme vira-lata correndo na sua direção e sendo enforcado pela coleira segura por uma corda num pé de manga, ela saiu assustada, o bicho ficou tossindo.
Não almoça, belisca umas coisas que tem na geladeira e se sente satisfeita. Estende as roupas no varal e se delicia com o cheiro do amaciante das roupas quando o vento as sopra. Torce para que o cheiro chegue à vizinha, queria retribuir a gentileza das canções divididas. Vai para a sala, liga a TV, deixa num canal qualquer, ouve sobre as milhares de mortes por dia enquanto passa as roupas de cama e semelhantes.
Às seis horas, em ponto, começa o jantar. Olhos cheios de lágrimas, são as cebolas – as vezes não são, não – o mesmo cardápio de sempre: arroz, feijão, salada, carne e algum legume. Uma amiga, ex-colega de serviço, liga, lhe conta sobre alguma paquera, pergunta como vai o casamento e quando “saem” os filhos, ela não responde, a mulher não nota, não se importa, desligam a ligação. Fecha as janelas e cortinas da casa. Toma banho, se olha demoradamente no espelho, encolhe a barriga, estica os primeiros pés de galinha com a ponta dos dedos, sente-se mais perto do fim da vida do que do início.
Às oito, o marido chega. Beija-lhe a boca, com cheiro de cigarro de palha. Enquanto ele tira sapato, meias e camisa e deixa jogados pela sala impecável, ela coloca sua comida e lhe pergunta como foi o dia. A mesa estava arrumada para jantarem juntos (todo dia), ele diz que irá comer na sala vendo o programa de luta (todo dia). Ele diz que o dia foi “normal”, nem uma palavra a mais. Ela come sozinha na cozinha, ouvindo baixinho música pelo celular. Termina, busca o prato e o copo dele na sala, lava as vasilhas e guarda o que sobrou da comida. Sob o pote de arroz, pega disfarçadamente o comprimido anti-bebês e o toma sem água. Faz café, desde a infância gosta de café após o jantar, hábito roubado do pai, que, como a vizinha, gostava de Belchior.
O marido coça o saco e troca de canal enquanto ela pega seu uniforme do chão e leva para o cesto no banheiro. Ela volta e se senta ao lado dele sem proximidade, ele não a olha. Ficam ali, imóveis olhando ao programa televisivo, ele pensa na moça do RH que recusa as suas investidas, ela pensa em tanta coisa que não pensa em nada. Foi o que dez anos de matrimônio fizeram com eles. Quando o programa acaba, ele desliga a televisão; vai ao quarto, tira o que sobrou das roupas e as deixa jogadas no chão do quarto. Ela fica mais um tempo sentada na sala, olhando para a mancha ao lado do sofá.
Ele vai se deitar, pergunta se ela não irá dormir, ela dá de ombros e responde que precisa arrumar umas coisas enquanto pega as roupas do chão. Ela enrola até ouvir seu ronco, só então vai se deitar.
Todo dia.
Todo dia.
Todo dia.
Mas não hoje. Hoje a corda do varal arrebentou quando ela colocou um cobertor pesado demais. Hoje ela pegou a escada para arrumar o varal. De cima da escada ela viu a vizinha. Vestes simples, riso frouxo, pés descalços, cabelo curto, olhos castanhos intensos, 18 anos talvez. Enquanto cantava ela fazia vasos de barro. O olhar de Marília se fixou nas mãos marrons, cuidadosas, em torno da massa molenga. Ela queria que a vida lhe tocasse daquela forma. A vizinha não a viu. Ela desceu da escada.
Fez tudo exatamente como todo dia. Mas seu pensamento estava longe, estava nas mãos sobre o barro, mãos de barro, mãos-barro. Do barro fez-se o homem. Das costelas a mulher? Fez tudo como exatamente toda noite.
Não foi assim pela manhã. Pela manhã, Marília não quis ser boneca, não aceitou ser receptáculo. Quando o marido saiu, não comeu, não abriu as janelas. Ficou sentada na beira da cama, no escuro, quieta, silente. Pensava nas mãos, no barro, no sol, no cheiro de amaciante. Ligou para uma tia meio distante, pediu abrigo. Pela manhã, Marília nasceu do barro. Saiu da casca e foi ser vaso, jarro, recipiente para a felicidade – ou tentativa dela.