Leito de estórias

Um poema de Ana Vitória Gomes Moreira

Deitadas elas se olham

se imaginam e se contam histórias.

Os dedos entrelaçam os fios,

do cabelo, da vida e do destino.

O conto seria outro,

as amarrações e nós: outras.

Outros não, porque em masculino é descabido.

Rememoração do dia no lago

Da vida em processos

Dos caminhantes, instantes.

Bocas de anos, aproximadas numa língua

que ambas nem sabem mais, mas contam.

E como contam histórias.

Puro deleite, euforia.

Elas se beijam, se consagram e se fundem

em história sem fim.

Seria contada algum dia?

O que interessa agora é que os nós dessa narrativa

se tornam nós na garganta, nas pernas, nos braços.

Imobilização. Tesoura sem ponta.

Amarrilhos ordenados na cadência da trama.

Paraíso proibido

Um conto de Thainá Gonçalves

Eu gozei sangue enquanto você mastigava meu coração. Você sempre foi meio assim… meio mulher, meio furacão, meio sedução. E eu caí. Caí na sua cama com um sorriso nos lábios. Você me navegou como se me conhecesse desde sempre, cada curva, cada arrepio, pareciam fazer parte da sua boca, uma completude perdida em um tempo que nem sei. E eu me abri para você, abri minha blusa para você… Não estou certa de que a ordem seja essa.

Você bagunçou meus lençóis, minha alma, me tragou e me soltou com a mesma despretensão que faz com a fumaça do seu cigarro. Mas eu não sei esvoaçar até o céu, até deixar de existir. Eu ainda estou aqui. Eu deveria ter sido sincera, eu queria mais do que você por algumas horas na minha cama. Eu queria saber o que tem por trás desses olhos de chamas e o que dizem as suas palavras quando não são putarias sussurradas ao pé do ouvido. Quem é você quando você não vem?

O problema é que, além dos meus orgasmos, entreguei a você meu coração. Talvez você não entenda o que se faz com um, e fez o que sempre faz comigo, é, você fodeu também o meu coração. Você me comeu, sem talheres, sem etiquetas, sem guardanapos ou modos. Não foi o suficiente, você devorou o meu coração. Eu estava molhada, suada, cansada, ofegante, sua cabeça estava repousada em minha coxa, havia uma marca de chupão em meu peito, seu cabelo molhado de suor grudado na sua testa, seus olhos refletiam a luz da lâmpada do abajur, você parecia longe, em êxtase; eu disse ‘eu te amo’.

S

I

L

Ê

N

C

I

O

Eu não sabia quase nada sobre você, mas sabia o suficiente: você podia comer uma mulher, mas não podia amar uma mulher.

        Não disse nada, me olhou como um leigo olha um mapa de Paris. Veio pra cima de mim como quem acha um oásis no deserto. Me beijou com ardor. O que isso significava? Um ‘eu também’? Me entreguei. Você me fodeu. No bom sentido da palavra. Tinha urgência em cada toque. Me beijou o ventre. Me arrancou gemidos. Se encaixou em mim. Gozou comigo. Fomos o mar, dilutas em nós.

Você me fodeu.

É, assim, no mal sentido da palavra.

          Me beijou e disse que tinha que ir. Não molhou apenas meu lençol naquele dia. Meus olhos também ficaram molhados. Nunca mais voltou, bloqueou minhas mensagens e ligações. Eu não deveria ter misturado escolha e sorte, cristão e pagão, Bossa nova e Carnaval. Passaram por aqui, alguns outros amores vãos, mas cada orgasmo solitário com gosto de lembrança viva é dedicado a você.


Gênesis

Um conto de Thainá Gonçalves

Ela perdeu o emprego no início da quarentena, desde então presta atenção na beleza que a rodeia e também no seu antônimo. Mantém a casa arrumada, impecável. O marido fanfarrão não perdeu o emprego, inclusive, nem acredita na pandemia nem no vírus nem no número de mortos, acredita no presidente. Faz churrasco com os amigos do trabalho na casa do Marquinho, quase todo final de semana. Ela não vai, se recusa a ir.

Tem sido assim, ele acorda cedo, um pouco mais cedo, transa com o corpo imóvel dela sob seu, a mente dela está sempre longe, às vezes na lista de compras, às vezes na preocupação com a mãe, às vezes na voz da vizinha; então, ele se levanta, toma banho e vai para o trabalho. Ela levanta, abre as janelas de toda a casa, toma uma xícara de café requentado do dia anterior, come um pão feito na frigideira e começa a arrumação, a limpeza do que já está limpo. Começa pela sala, é seu lugar favorito na casa, se identifica com um rosto triste que uma infiltração formou próximo ao sofá. Arruma o quarto, os três, mesmo os que não estão sendo utilizados nem serão (eles tentam ter filhos há três anos, mas, em segredo, ela jamais parou com o anticoncepcional). Limpa a cozinha, organiza os armários (de novo) de novo e de novo. Limpa o banheiro do chão ao teto, torna o box invisível.

A área não é seu lugar favorito, mas é o seu momento favorito. Faz uma pausa, liga para a mãe para ouvir o que já sabe, a mãe também não acredita na pandemia, também não para em casa, a mãe tem setenta anos. Geralmente, ao fim da ligação, ela faz uma prece à nossa Senhora Aparecida pela saúde da mãe. Volta à faxina. Coloca as roupas na máquina de lavar e se senta num toco de árvore ao lado do tanque para ouvir a vizinha cantar. É o único momento do dia em que se sente viva, em que sai do automático. Ela canta Belchior, Raul Seixas e Cássia Eller, um repertório limitado das mesmas canções de sempre, mas para a solitária Marília, um show particular.

Ela fica ali, de um lado o som mecânico das roupas girando, do outro a voz melódica da vizinha. Todo dia os mesmos pensamentos “o que será que ela faz enquanto canta?”, “será quantos anos tem?”, “como será a sua aparência?”, “será que sabe que a escuto?”. Todo dia as mesmas perguntas. Um dia quando estava indo fazer compra, viu o portão da casa do lado aberto, dentro do lote uma casa pequena, velha, com tintura rosa-claro descascada, rodeada por terra batida, um pé de manga aqui, outro ali, o lote era grande; ela esticou o pescoço, curiosa, procurando pela dona da voz, só se deparou com um enorme vira-lata correndo na sua direção e sendo enforcado pela coleira segura por uma corda num pé de manga, ela saiu assustada, o bicho ficou tossindo.

Não almoça, belisca umas coisas que tem na geladeira e se sente satisfeita. Estende as roupas no varal e se delicia com o cheiro do amaciante das roupas quando o vento as sopra. Torce para que o cheiro chegue à vizinha, queria retribuir a gentileza das canções divididas. Vai para a sala, liga a TV, deixa num canal qualquer, ouve sobre as milhares de mortes por dia enquanto passa as roupas de cama e semelhantes.

Às seis horas, em ponto, começa o jantar. Olhos cheios de lágrimas, são as cebolas – as vezes não são, não – o mesmo cardápio de sempre: arroz, feijão, salada, carne e algum legume. Uma amiga, ex-colega de serviço, liga, lhe conta sobre alguma paquera, pergunta como vai o casamento e quando “saem” os filhos, ela não responde, a mulher não nota, não se importa, desligam a ligação. Fecha as janelas e cortinas da casa. Toma banho, se olha demoradamente no espelho, encolhe a barriga, estica os primeiros pés de galinha com a ponta dos dedos, sente-se mais perto do fim da vida do que do início.

Às oito, o marido chega. Beija-lhe a boca, com cheiro de cigarro de palha. Enquanto ele tira sapato, meias e camisa e deixa jogados pela sala impecável, ela coloca sua comida e lhe pergunta como foi o dia. A mesa estava arrumada para jantarem juntos (todo dia), ele diz que irá comer na sala vendo o programa de luta (todo dia). Ele diz que o dia foi “normal”, nem uma palavra a mais. Ela come sozinha na cozinha, ouvindo baixinho música pelo celular. Termina, busca o prato e o copo dele na sala, lava as vasilhas e guarda o que sobrou da comida. Sob o pote de arroz, pega disfarçadamente o comprimido anti-bebês e o toma sem água. Faz café, desde a infância gosta de café após o jantar, hábito roubado do pai, que, como a vizinha, gostava de Belchior.

O marido coça o saco e troca de canal enquanto ela pega seu uniforme do chão e leva para o cesto no banheiro. Ela volta e se senta ao lado dele sem proximidade, ele não a olha. Ficam ali, imóveis olhando ao programa televisivo, ele pensa na moça do RH que recusa as suas investidas, ela pensa em tanta coisa que não pensa em nada. Foi o que dez anos de matrimônio fizeram com eles. Quando o programa acaba, ele desliga a televisão; vai ao quarto, tira o que sobrou das roupas e as deixa jogadas no chão do quarto. Ela fica mais um tempo sentada na sala, olhando para a mancha ao lado do sofá.

Ele vai se deitar, pergunta se ela não irá dormir, ela dá de ombros e responde que precisa arrumar umas coisas enquanto pega as roupas do chão. Ela enrola até ouvir seu ronco, só então vai se deitar.

Todo dia.

Todo dia.

Todo dia.

Mas não hoje. Hoje a corda do varal arrebentou quando ela colocou um cobertor pesado demais. Hoje ela pegou a escada para arrumar o varal. De cima da escada ela viu a vizinha. Vestes simples, riso frouxo, pés descalços, cabelo curto, olhos castanhos intensos, 18 anos talvez. Enquanto cantava ela fazia vasos de barro. O olhar de Marília se fixou nas mãos marrons, cuidadosas, em torno da massa molenga. Ela queria que a vida lhe tocasse daquela forma. A vizinha não a viu. Ela desceu da escada.

Fez tudo exatamente como todo dia. Mas seu pensamento estava longe, estava nas mãos sobre o barro, mãos de barro, mãos-barro. Do barro fez-se o homem. Das costelas a mulher? Fez tudo como exatamente toda noite.

Não foi assim pela manhã. Pela manhã, Marília não quis ser boneca, não aceitou ser receptáculo. Quando o marido saiu, não comeu, não abriu as janelas. Ficou sentada na beira da cama, no escuro, quieta, silente. Pensava nas mãos, no barro, no sol, no cheiro de amaciante. Ligou para uma tia meio distante, pediu abrigo. Pela manhã, Marília nasceu do barro. Saiu da casca e foi ser vaso, jarro, recipiente para a felicidade – ou tentativa dela.

Terapi(c)a do amor

Um conto de Tammara Savvithna Matos Novikov

Já havia algum tempo em que eu pensava nele antes de dormir. Todas as noites o rosto dele me ocorria brevemente, quando já estava mergulhando no sono. Sentia um estranhamento, me julgava. Como poderia estar pensando nele antes de dormir? Mas, contando que não saísse da minha imaginação, ninguém poderia descobrir.

No início, só imaginava o rosto em um sorriso sincero. Mas, não demorou muito para que eu começasse a imaginar nossos lábios se entrelaçando e suas mãos pesadas passeando pelas minhas curvas. Me descobria através do tato. Apesar do erotismo, tudo era sempre muito bem recheado de um romantismo que facilmente me ganharia. Me sentia constrangida por pensar nele desta maneira. Temia imaginar algo mais selvagem, pois não sabia como poderia acabar me comportando diante dele. Já imaginou se ele desconfiasse? Poderia colocar tudo em risco.

Infelizmente, o que eu mais temia aconteceu de maneira muito pior do que poderia imaginar: A primeira vez que sonhei com ele. Jamais esquecerei deste sonho. Eu não sabia nada sobre ele, talvez fosse até casado, ele não tinha uma aparência de alguém tão jovial. Me passava a impressão de ter filhos. Mas nenhuma dessas características que eu pré-julgava me impediam de me sentir absolutamente atraída por ele. Eu chegava ao consultório para mais uma sessão e ele me recepcionava, assim como de costume. Eu havia me preparado para aquele encontro. Passei o meu melhor perfume e usava meu vestido favorito na cor amarela com minha sapatilha azul escuro. Meus cabelos estavam soltos e leves sob meus ombros. E meu coração totalmente disparado. Me perguntava muito se ele estava me achando atraente, talvez todo aquele preparo fosse em vão, talvez não fizesse nenhuma diferença para ele. Quando entrei na sala, já me direcionei para minha poltrona e aguardei ansiosamente ele fechar a porta e sentar-se diante a mim. Não conseguia olhar para nada além de seus olhos castanhos.

–  Como você está? – Ele me perguntou. Nada de diferente, infelizmente.

–  Estou muito feliz hoje, mas um pouco nervosa. – Respondi sem medo, não queria transparecer minha insegurança para ele. Permaneci em silêncio por alguns instantes na esperança de que ele me perguntasse a razão do meu nervosismo.

– Nervosa por quê? – me perguntou após um longo silêncio, quase constrangedor. Ele não era de muitas palavras geralmente, mas, graças a isso, tive minha deixa.

– Porque eu tenho que te contar algo que talvez mude tudo em minha vida. Talvez para melhor, talvez para pior. Só vou descobrir depois que contar, mas sem dúvidas mudará, porque por mais que a sua reação seja neutra, mil e uma coisas passarão pela minha cabeça – respondi suavemente.

Ele cerrou levemente os olhos, como se quisesse me observar melhor. Me senti a própria chapeuzinho vermelho diante do lobo mau.

– Pode falar.

Engoli seco de tanto medo. Será que ele já havia entendido? Ele é psicólogo, provavelmente já está entendendo. Talvez nunca tenha sido segredo para ele. Agora não posso voltar atrás.

– Eu estou apaixonada por você.

Ele me olhava fixamente, sem expressar nada. Talvez ele queira que eu fale mais sobre. Não é para eu me calar agora, tenho que continuar falando. Ele não pode sentir pena de mim. – Eu estou pensando em você todas as noites antes de dormir, já tem algumas semanas. Quando digo que o dia mais feliz da semana é o dia em que venho para cá, é porque sinto como se pudesse tocar o céu ao te ver. Eu amo tanto alguns detalhes que pude notar em você. O jeito que você ri quando eu falo alguma merda. Eu definitivamente amo seu sorriso. Amo seus diferentes olhares. Amo sua voz e o jeito que você fala. E quando eu me abro sobre algumas coisas, sinto como se existisse apenas você no mundo em que eu pudesse confiar. Mas, ao mesmo tempo, eu quero saber sobre você também, me incomoda tanto não saber, te perguntar como está e você me responder tão automaticamente, como se não importasse. Eu me preocupo com você, quero cuidar de você também. Mas, além de tudo isso, eu desejo mais do que tudo ser sua. Nem que seja por apenas uma vez. Você sabe do que estou dizendo. Me desculpa se eu estiver sendo muito inconveniente… eu não quero estar te desrespeitando. Ele me interrompe depois disso.

– Não estou me sentindo desrespeitado, posso-lhe garantir. É realmente muito importante que você traga esse assunto. O código de ética não permite que exista qualquer tipo de relação entre o paciente e o psicoterapeuta, por isso não vamos poder dar continuidade aos nossos encontros semanais. Teremos que encontrar outro profissional para te atender. – Ele me responde com calma, como se nada do que eu disse com tanta intensidade houvesse o atingido. Me sinto totalmente rejeitada. Tento disfarçar a decepção, mas falho horrivelmente. No fundo eu já sabia que seria assim.

Ele se levanta da poltrona preta e vem em minha direção. Eu congelo absolutamente. Não consigo prever o que vai acontecer. Ele para na minha frente e me estende a mão. Penso que é para me cumprimentar… é claro… está se despedindo! Por conta do nervosismo, minhas mãos estão suadas. Passo-as rapidamente na barra do vestido tentando secá-las um pouco e seguro a mão dele, mas não encaixa o aperto de mão. Ele me puxa levemente, sugerindo que eu levante. Eu levanto lentamente sem entender o que está acontecendo. Só consigo olhar pros olhos dele. Ele me olha com um leve sorriso no rosto, quase malicioso. O que será que passa em sua cabeça?

– Agora que eu não sou mais seu psicoterapeuta, se for da sua vontade, podemos tentar explorar alguns dos seus desejos. – Ele me fala em um tom calmo, porém cheio de tesão. Seus olhos me devoram. Sinto cada parte do meu corpo arrepiando e dou um leve suspiro. Estou completamente incrédula. Completamente cheia de desejo. Me sinto transbordar.

– Mas, aqui? Agora? E se alguém entrar? E se alguém nos flagrar? – Respondo-o em tom de preocupação e ele ergue o semblante dando um leve sorriso, estaria achando engraçada minha reação?

Ele solta minha mão com cuidado e se direciona até a porta, e indica que a mesma está trancada.

– Nós teríamos ainda uns 40 minutos se eu ainda fosse seu terapeuta. Acredito que ninguém vá nos incomodar. Mas, eu não estava sugerindo que fizéssemos algo aqui. Isso quem pensou foi você. – Eu fico levemente constrangida ao me dar conta disso. Mas, ao mesmo tempo, ele não agiu como se achasse ruim.

Eu caminho até a ele atravessando a sala. Sinto minha autoestima nas nuvens, como se nada pudesse me impedir de beijar o homem que eu amo. Paro em sua frente e passo o verso dos dedos em seu rosto, admirando seus olhos e lábios em triangulação. Enquanto acaricio seu rosto, estaciono meu polegar em seus lábios. Ele me segura pela cintura. Consigo sentir suas mãos fortes em mim. É tão real o seu toque que até me esqueço que é apenas um sonho. Eu subo minha mão para o cabelo dele e continuo acariciando-o, apoio minha outra mão no ombro dele. Ele me puxa para mais perto impedindo que eu continue acariciando seus cabelos, e me beija. Posso sentir as borboletas em meu estomago com esse beijo tão longo e ardente, não quero acordar nunca. Estou completamente mergulhada num sentimento de paixão, sinto meu corpo flutuar. Nossos corpos tão próximos e quentes, tão romântico, tão carinhoso. Nós dois mergulhados em um beijo tão intenso que me deixa completamente dominada. Absolutamente sem fôlego para me conter.

 Mas, algo me faz lembrar do chão. Aquela tal rigidez dos homens. Continuamos a nos beijar, mas agora sabemos que talvez não fiquemos só nos beijos. A cada segundo sinto-me mais envolvida e completamente inundada. Como ele me tem tão fácil? É porque eu não quero perder a oportunidade de ser invadida pelo homem que eu amo. Quando já me encontro sem ar, ele puxa meu cabelo e começa a beijar meu pescoço até chegar ao pé do meu ouvido e me perguntar cheio de tesão:

– Deixa eu te comer?

– Deixo. Mas, com uma condição. – Ele volta o rosto para mim e olha em meus olhos. Eu prossigo. – Você vai tapar minha boca com a mão, porque eu quero te ver sem nenhuma piedade de mim. –  Ele me olha com cara de safado enquanto balança a cabeça em negativa e responde:

– Seu pedido é uma ordem.

Mãos calientes

Um poema de Márcia Martins Diniz

O rapto de Prosérpina, de Bernini

Desejo tuas mãos quentes 

No meu corpo ,

A espera de um instante nosso, 

Prazeroso.

Tuas mãos sabem me tocar,

Vasculhar as curvas do meu corpo, 

Ensaiando amores,

Sabores,  

Fervores. 

Tua boca também é quente sabe apreciar 

Beijos,  

Beijar outros lábios, 

Outros meios. 

Tuas mãos quentes me prendem nos teus braços me faz sentir tua boca

Frente a frente aos  lábios. 

Teu olhar me lubrifica. 

de tal maneira, que só sei te olhar. 

Quero me render, tuas boas mãos já me sabem ouvir, 

Me reverenciar. 

Elas acolhem meu corpo, 

Esquenta minha alma.   

Me tocam.

Deixo tuas mãos desenharem meu corpo,

Deixo elas me assediarem  

Só elas conseguem

Me levar ao ápice, 

E me trazer ao chão.

Só elas me trazem prazer, manifesta sensação, 

Uma menção. 

Mãos que falam, mas estão vívidas, ousadas e quentes dentro de mim.  

Mãos como essas, não as perco mais. 

Eros pandêmico ou pequenos ensaios sobre a sofreguidão

Um conto de Luciana Borges

Ámame otra vez/ si te atreves” [Arca]

[como se fora a mulher de Lot]

olhou a tela do celular.

o identificador facial não reconhecia seu rosto com a máscara. digitou o código.

de fato, não devia ir. ainda hoje havia lido mais notícias sobre o aumento dos casos na cidade, as mortes, a necessidade de manter o isolamento, o perigo de.

sucessivas piscadas de luz na tela, para não deixar seu cérebro se distrair do tormento. ei, você não vem? e um emoji fofo de coração partido. leu por fora para não marcar mensagem lida, tirou a máscara, sufocava, precisava pensar. desde o início da pandemia que nada, já estava seca, já estava esquecendo o que era contato com outro corpo. e aquele boy era um velho conhecido, crush habitual, não era nenhum novato do tinder. tá certo que já tinha uns meses que tinha sumido e tinha ressurgido da tumba no meio quarentena mas quem se importa não é mesmo. ela precisava dar. e ele estava bem, tinha garantido que não tinha sintoma e que no trabalho ninguém estava doente. outra piscada na tela. dessa vez um nude!

mas era loucura, devia mesmo esperar, não ia morrer por uma foda. mais de mil mortos todo dia. ela não queria ser um desses mortos dos próximos quinze dias. mas se ela não fosse e depois pegasse covid de outra forma? ninguém poderia saber se. aí além de tudo ia morrer sem um pingo de prazer, oh céus, ela não merecia. que merda ter lido todas aquelas teorias sobre orgasmo, morte, eros, thanatos, blá blá blá.

pensou em pedir que ele viesse e se livrava de se aventurar na rua. mas ele tinha era moto, aquelas horas ia acabar vindo de uber e aí sim ela entraria nas estatísticas de verdade.

olhou de novo a tela do celular. dessa vez apagada. respirou fundo.

pegou a bolsa, as chaves, colocou a máscara, fechou a porta e entrou finalmente no carro. dane-se, é só passar álcool gel.

***

[quando fevereiro chegar]

conheceram-se no protesto, de máscara, ambos. a dele, Coringa, a dela, Dalí.

os olhos dele sorriram, os dela também. falaram sobre como não deviam estar ali por causa do contágio e tal, mas a coisa estava séria né? precisavam fazer algo. apesar de.

foram caminhando e as coincidências muitas. aquele arrepio esquisito das primeiras vistas. ou quase vistas, no caso. o rosto dele ruborizou com um pensamento que lhe fez as calças mais justas, mas ela não viu. ela mordeu o lábio com força até sentir gosto de sangue, e roçou uma coxa na outra, mas ele também não viu porque a máscara e as bombas de gás e o choque.

palavras de ordem gritando nas bocas por trás do tecido, correram e sonharam ser o carnaval, quando se podia beijar qualquer um, arrastar para um canto escuro e trocar fluidos vários no mundo pré-apocalipse. 

***

[status de relacionamento]

casados há vinte anos, finalmente ninguém estranhava que estivessem sempre a pelo menos dois metros de distância e só trepassem sem beijos e abraços, afinal, não se deve brincar com esse vírus maléfico.

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Conto originalmente publicado na Revista Ruído Manifesto, em junho de 2020: http://ruidomanifesto.org/pandeprosa-o-total-de-mortes-nao-e-mais-divulgado/

Análise do conto “A Chave na fechadura”

Por Ana Luiza Müzel de Sousa & Tammara Savvithna Matos Novikov

A partir da leitura do conto “A chave na Fechadura”, de Cecília Prada, é possível analisar o impacto da intuição do casamento, atrelado a uma cultura machista na qual reprime a sexualidade feminina, assim como o prazer feminino, e objetifica a mulher. O conto é narrado pela personagem Leda, que conta a história do seu casamento, ou melhor dizendo, como se deu o fim de seu casamento de 10 anos, e todas as mudanças na sexualidade e afetividade de seu marido durante esse período.

Leda inicia o conto trazendo o questionamento do que seria o erotismo e discorre acerca da objetificação dos corpos femininos, “seios-nádegas-coxas”, até os clichês, “rendas francesas, freiras violadas, adolescente-versus-mulher madura, coristas nuas de meias pretas” repulsando esse tipo de erotismo, e passa a descrever como o seria:

Das zonas ditas erógenas, parece que na mulher – assim em geral nos delimitam, os tecnocratas da sensibilidade – os que dizem de cá pra lá, dali até aqui, botõezinhos de carne ou de sensibilidade para apertar na hora certa.

Esse trecho traz a reflexão acerca de uma cultura machista que doutrina e controla corpos femininos. Uma sociedade que impõem um passo-a-passo para o prazer, para a libido, o certo e o errado no sexo, o puro e o pecaminoso. Em suma, o extremo controle da sociedade ocidental na sexualidade do indivíduo, mas a notória diferença de liberdade sexual e de explorar o próprio corpo, quando comparado o prazer feminino ao prazer masculino. No livro História da sexualidade: a vontade de saber, de Michel Foucault é abordada a repressão da sexualidade como método de controle em um sistema capitalista que não tolera a dissipação da força de trabalho nos prazeres, a menos que seja reduzido a fim da reprodução.

Leda descreve como seria seu erotismo, evidenciando o intenso desejo que sente, mas após descrevê-lo, afirma “nem sempre, nem sempre”, trazendo para o conto o começo de suas queixas e frustrações quanto a realização de seus desejos e a finalização do seu prazer: “silêncios, frieza dos lençóis, meu corpo abandonado… A cama, é uma dimensão do disparate existencial. Do desacordo de duas solidões. Não. Não divago. Isto tudo é questionamento, ou é vivência muito sobrando pelos poros, não posso?”. A personagem traz à tona a evidência de uma relação que não a realiza sexualmente, e da distância que sente entre o seu corpo e o de seu marido mesmo em momentos de intimidade, o que lhe causa muita solidão e infelicidade matrimonial. Em O erotismo, Georges Bataille fala a respeito do erotismo dos corações, referindo-se a ele como mais livre, por separar a materialidade do erotismo dos corpos, porém o sofrimento seria ainda maior, pois somente o sofrimento revelaria a inteira significação do ser amado. O sofrimento de Leda é enorme, pois ela não sente a união sexual em conjunto com a união dos corações, sente somente a descontinuidade abordada por Bataille.

Sim, éramos felizes. Embora tivesse havido de minha parte uma decepção. Por quê? Ora, meu jovem, meu muito jovem amigo, quase toda mulher se decepciona com o marido ansioso e inexperiente, essa você já ouviu por certo, não? Ele vinha, queria tomar-me sem mais, assim como um brinquedo novo recém-descoberto, meio depressa – aquele carinho, aquela unção da espoja que me passava ao corpo antes… não, nada mais disso. Eu me deixava tomar, mas pensava “não sinto nada”. Esse pensamento era uma pedra que caía na minha solidão, um muro enorme de pedra que crescia sobre nós dois. Eu quis falar, quis dizer a ele, difícil também a expressão, mas falei: “Sinto que está faltando alguma coisa.” Ele tirou o cachimbo da boca (isso, até foi mais tarde, numa noite fria, uns dois anos de casados) e respondeu seco e defensivo: “Não sei do que você que falar. Eu me sinto perfeitamente feliz no casamento. Se você não estiver, pode se separar. (PRADA,1982, p. 11).

Este parágrafo evidencia a infelicidade da personagem no casamento, e apesar de tentar diálogo com seu marido, não obtém êxito. Leda não sentia prazer no sexo e deixa isso muito explícito no texto, embora se sentisse impotente por não conseguir resolver. Além de se culpabilizar pela infelicidade do casal, já que ao decorrer do conto a personagem afirma que eles formavam um casal feliz, pois eles haviam tido filhos, conquistado muitos bens-materiais e que tinham muito momentos em famílias tidos como o ideal de uma família feliz. Quanto a fala de seu marido, demonstra a ausência de interesse em proporcionar o prazer e a felicidade para o casal, se preocupando somente com si próprio. O egoísmo por parte do parceiro quanto ao prazer sexual é comumente encontrado em relações que perduram por longos anos, consequência de uma cultura que objetifica corpos femininos com a finalidade de proporcionar prazer somente ao homem. Outras vezes, o corpo da mulher é tido como um recipiente para trazer a prole ao mundo. Independente do ponto observado, o prazer feminino é totalmente apagado e excluído, sendo que a mulher que se permite a sentir esses prazeres é tida como uma mulher suja, pecaminosa, mulher da vida ou prostituta.

Quando se trata de casamento, Bourdieu afirma que o dispositivo central da inferioridade e da exclusão da mulher é o matrimônio, que está na base da ordem social e convencional para a produção e reprodução da dominação masculina, onde “As mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir para a perpetuação do capital simbólico em poder dos homens”. (BOURDIEU, 2003, p. 55).

Cansada da vida que levava com o marido, Leda opta pelo divórcio. Porém, ocorre um momento de intimidade entre ela e o marido que a faz questionar sua escolha. Ela passa mal, e ele a leva ao hospital, cuida dela com carinho e ela se sente amada novamente. “Naquela aproximação, ele se curvou sobre mim, beijou-me, pela primeira vez em tanto tempo. E no nosso sofrimento, fizemos amor”.

“Quando voltou, tinha recuperado a armadura e o distanciamento. Todo inteiro na sua rigidez, o que não se deixava “vencer” por uma mulher. Arrependido da efusão do antes, do deixar-se ir.” Com esse trecho é possível trazer o impacto que a cultura machista traz também aos homens, que o impedem de demonstrar seus sentimentos. O enrijecimento das emoções do marido de Leda, a faz desistir de vez do casamento. Apesar disso, a personagem alega saber que o marido também sofre com aquela distancia toda. O sexo frio, sem o calor das emoções, apenas tecnicidades e acrobatismo vazio, sem o tempero que ela esperava. Amor sem chamas. Ela sempre sonhava com o retorno à época na qual o marido demonstrava carinho e afeto. Desejo intenso e vívido. E mesmo após a separação, ainda aguarda ouvir os mesmos passos no corredor, o som da chave na fechadura anunciando a chegada do companheiro que a amava. Mas, apesar de toda a intensidade e desejo, mesmo após dez anos de casamento, Leda ainda manifestava a timidez em pedir por sexo ao seu marido. Leda deseja o retorno da continuidade entre ela e o marido, e Bataille traz em sua obra um trecho que explica esse sofrimento de Leda com essa descontinuidade:

A própria paixão feliz impele a uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade possível de se gozar, é tão grande que é comparável a seu contrário, o sofrimento. Sua essência é a substituição da persistente descontinuidade de dois seres por uma continuidade maravilhosa entre dois seres. Mas essa continuidade é sobretudo sensível na angústia, na medida em que ela é inacessível, na medida em que ela busca na impotência e no tremor (BATAILLE, 2004, p. 32).

Por fim, após o momento íntimo que o casal teve após muito tempo, o marido de Leda diz ressentido que ela é uma mulher sexualmente madura. A partir disso, vemos que o marido também sente falta da época em que ambos eram jovens e inexperientes. O amor em chamas a flor da pele. Em contrapartida, existe uma lacuna, pois o marido de Leda pode estar responsabilizando-a pela falta de prazer na cama, como se mulheres mais velhas não sentissem prazer como mulheres novas sentem, reforçando mais uma vez o machismo e o controle da sociedade sobre os corpos femininos.

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

PRADA, Cecília. A chave na fechadura. In: Muito prazer. Rio de Janeiro: Record, p. 9-16, 1982.

FOUCAULT, Michel. _____. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.

Cadela

Por Leydilaine Moreira da Silva

O conto que iremos analisar denomina-se Cadela, de Luiz Vilela, e se encontra no livro 69/2 Contos Eróticos (2006), é uma coletânea organizada por Ronald Claver.

O conto tem sua estrutura organizada praticamente em diálogos e relata a discussão entre um casal por uma traição que não é explicada.

Adão e sua esposa sobem a encosta do morro, ao chegar no topo mais alto ele a questiona sobre a suposta traição, a mulher sem reação apenas pede perdão e ressalta que errar é humano, mas Adão não a perdoa e acaba ofendendo a mulher chamando-a de “Cadela”.

 Ao ver que sua honra foi perdida, Adão agride sua mulher e a penetra sem seu consentimento, após o acontecimento ele manda a mulher embora, ela então veste sua roupa e caminha ladeira abaixo no morro, logo em seguida retorna, ajoelha-se e beija os pés do homem.

No conto há uma traição que não é explicada, e é essa não explicação que mostra a existência do patriarcado nas relações domesticas, pois “o patriarcado é um sistema social no qual a diferença sexual serve como base na opressão e da subordinação da mulher pelo homem” (PISCITELLI, 2009, p.11), ou seja, a mulher, independente de qual seja o motivo da traição, não é digna de dar sua justificativa.

Como retratado no texto, uma mulher que segue os seus instintos sexuais é considerada uma “cadela”, ou seja, a mulher recebe a punição e suas ações tem como consequência marcas externas. “Fomos criadas para temer o sim dentro de nós, nossas mais profundas vontades […] O medo de nossos desejos os mantém suspeita e indiscriminadamente poderosos” (LORDE, 1984, p. 58).

O machismo tem a mulher como um objeto de prazer, a tornando propriedade do homem, resultando na legitimação de diversos tipos de violência.

Adão (personagem do conto) após a agressão recuperaria sua honra que foi ofendida e a sociedade o colocaria como um ‘macho’ após esse ato.

 “Ainda hoje se mata a mulher por honra e a justiça considera o argumento da honra verdadeiro e legítimo, tanto que praticamente absolvem os homens que matam suas mulheres.” (GROSSI, 1995, p.12)

 A mulher ao voltar até Adão se ajoelhando tem a agressão como uma purgação de seus pecados, fazendo uma breve alusão a Maria Madalena que beijou os pés de Jesus que perdoa os pecados vindos da prostituição. “[…] efeitos de reconversão espiritual, de retorno a Deus, efeito físico de dores” (FOUCAULT, 1988, p. 26).

Referências

CLAVER, Ronald (Org.). 69/2 Contos Eróticos. Belo Horizonte: Ed. Leitura, 2006.

ALMEIDA, Heloisa Buarque, SZWAKO, José Eduardo (Org.) Diferenças/Igualdades. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2009.

FOUCAULT, Michel. Nós, os vitorianos. In: _____. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

LORDE, Audre Artigo Original: Use of the Erotic: The Erotic as Power, in: LORDE, Audre. Sister outsider: essays andspeeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 53-59.Tradução feita por Tatiana Nascimento dos Santos – Dezembro de 2009, retirada do Zine “Textos escolhidos de Audre Lorde”. GROSSI, Miriam. Masculinidades: uma revisão teórica. Florianópolis: UFSC / Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1995

Análise “Há exatos cinco anos”, de Glória Azevedo

Por Pauline Rita Bernardes

“Há exatos cinco anos”, de Glória Azevedo, fala sobre Maria Alice e sua rotina sexual imaginária com sua colega de trabalho Lívia. O conto começa retratando os dias mecânicos de Maria Alice, sua rotina costumeira de trabalho e seu descontentamento com a sua vida diária. No decorrer do texto, a autora passa diferentes percepções ao leitor.

Primeiramente, têm-se a descrição da rotina mecanizada de Maria Alice, a qual transmite ao leitor o sentimento de solidão e depressão para com a personagem. Durante as primeiras passagens do conto, têm-se a impressão de que Maria Alice planeja seu suicídio: “[…] Acordar para ela, é sempre uma solidão envelhecida envolta por imaginações juvenis. Amanhã, não será mais. […] Maria Alice sente-se uma formiguinha, daquelas mínimas, facilmente esmagadas, presumidamente invisíveis. Mas amanhã ela estará completa” (Azevedo, 2006, p. 2).

Em um segundo momento, têm-se a impressão de que Maria Alice é apaixonada pelo seu colega de trabalho Mauro, o qual há cinco anos, transferiu-se para a mesma empresa que ela e a convidou para sua festa, que por sua vez, presenteou Mauro com um ferro de passar: “[…] Por que me lembro disso, agora? Que têm as festas que não vou, Mauro e seu ferro elétrico com a minha vida? Ela sabia. Sabia muito bem que o ferro não mais passaria as roupas de seu amor, a partir de amanhã” (Azevedo, 2006, p. 3).

Já no terceiro momento, têm-se a exposição da verdadeira trama do conto: o amor de Maria Alice para com Lívia, sua colega de trabalho e noiva de Mauro. O texto retrata as fantasias sexuais que Maria Alice têm com sua companheira de trabalho. O simples roçar de pontas dos dedos de Lívia fazia com que Maria Alice sentisse calafrios por seu corpo. Têm-se na obra então a retratação do amor lésbico.

De acordo com Pinto (1999) apenas no final da década de sessenta que a autocrítica em relação a retratação das expressões sexuais femininas começou a diminuir, passando a serem mais frequentes dentro da Literatura. Este conto de Azevedo (2006) retrata vários paradigmas para a Literatura pregada anteriormente na década de sessenta.

Têm-se aqui a expressão sexual feminina, a representação sexual lesbiana e também a perda da libido com a figura masculina, ou seja, o homem não será o detentor dos prazeres. Percebe-se tal fato no decorrer da história, onde Maria Alice deixa bilhetes para Lívia nos quais a moça relata seus sonhos eróticos com sua colega de trabalho,  atiçando o desejo de Lívia que tenta reproduzi-los com seu noivo Mauro, o qual não consegue satisfazê-la pelo fato de não possuir o corpo retratado nos bilhetes. Assim, cansada das características masculinas que Mauro possuía, Lívia pede separação e vai atrás das “línguas e dedos” de Maria Alice para que então pudesse desfrutar dos prazeres como descritos nos bilhetes. Assim, o final traz o entendimento do começo narrado no conto. O “amanhã” retratado como possível suicídio na verdade trata-se do dia posterior à chegada de Lívia, após abandonar seu marido, na casa de Maria Alice, ou seja, “amanhã” Maria Alice não mais acordará sozinha.

Referências

AZEVEDO, Glória. Há exatos cinco anos. In: Elas Contam. Organizadoras: Lúcia Facco, Helena Fontana, Glória Azevedo, Hanna-K, Lara Lunna. São Paulo: Editora Corações e Mentes, 2006.

PINTO, Cristina Ferreira. O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana. Vol. LXV. N. 187, Abril-Junho, 1999, p. 405-421.

Missa do Galo

Por Diogo Henrique Pereira

O foco desta a análise é o erotismo e o desejo do inconsciente no conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, visto que o tema erótico é pouco estudado em obras do autor. A proposta é mostrar as formas de construção do desejo a partir da visão batailliana e lacaniana em relação a transferência de desejo obtido entre os personagens. Em “Missa do Galo”, o erotismo se desenvolve atingindo a sedução que ultrapassa o sentido da visão, atingindo o tátil-sedutivo.  

O conto narrado em primeira pessoa, se passa em uma noite de natal, sendo protagonizado um estudante de dezessete anos chamado Nogueira. Na ocasião, ele morava na casa de um parente no Rio de Janeiro enquanto fazia os estudos preparatórios. O parente Meneses é casado com uma mulher chamada Conceição. O que sabemos, e o que todos da casa sabem, inclusive a esposa, é que Meneses tem uma amante que ele visita toda semana alegando ir ao teatro. Na noite de natal, Nogueira resolve ficar acordado até tarde para ir à missa do galo na Corte. Por volta de dez e meia da noite todos na casa estavam dormindo e Meneses teria ido “ao teatro”. Nogueira ficou na sala lendo seu livro à luz de uma vela esperando dar o horário para ir à missa. Enquanto lê seu livro de aventuras, é surpreendido por Conceição que aparece na sala dizendo que perdeu o sono, se sentando de frente com o rapaz. Então uma conversa extraordinária acontece, pois aquela mulher não era dada a conversas interessantes. Mais do que isso, Nogueira começa a se sentir perturbado – no bom sentido – por essa mulher, pela primeira vez ele percebera que ela é bonita, interessante. Reparou que Conceição não tirava os olhos dele e que “de vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedece-los”, gesto que ele não conseguiu ignorar. O olhar de Nogueira também estava fixado em Conceição, atento em cada movimento, cada detalhe: o balanço do seu corpo ao andar, os seus braços e até o “bico das chinelas” (talvez uma metáfora para o bico dos seios). Ao longo da conversa ele passa a enxerga-la com outros olhos, deixou de vê-la como “santa” e passou a encara-la como uma mulher sensual que “fazia esquecer a missa e a igreja”, ficou encantado por sua personalidade. Até que o vizinho com quem havia combinado de ir à missa aparece batendo na janela gritando que a missa estava prestes a começar, então ele se vê obrigado a interromper aquilo tudo. No dia seguinte, as coisas voltaram a ser como sempre foram, ou seja, Conceição voltou a ser uma dona de casa tradicional, “benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera”, que não tem interesse por quase nada.

Nogueira é um jovem tímido, ocupa seu tempo com “livros, poucas relações, alguns passeios”. É visível sua atração pela esposa de Meneses, como também sua falta de experiência, que o deixa sem saber o que fazer diante da situação. Com medo de desrespeitar a mulher, Nogueira se vê confuso com os acontecimentos daquela noite sem saber as verdadeiras intenções de Conceição. Já essa, conhecida como “santa”, tem o “temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lagrimas, nem grandes risos”. Tendo plena consciência da traição do marido, Conceição parece aproveitar a noite de ausência do marido para se aproximar de Nogueira. Na conversa dos personagens, ela chega a dizer que “preferia duas imagens, duas santas” do que os quadros que simbolizavam, talvez, o desejo, com imagens de mulheres que não achava próprio estarem em casa de família. Com isso, podemos interpretar um suposto desejo reprimido por ela.

É um pouco dificultoso perceber o que realmente acontece de fato na história, pois parece não acontecer nada. Essa é uma sofisticação da literatura machadiana, e objetivamente nada acontece, mas simbolicamente acontece naquela noite, a revelação fugaz de uma mulher passiva, dócil, provavelmente infeliz, revela por um instante a sua originalidade e personalidade. Conceição mostra para Nogueira, que não havia observado nela, que não era mulher desinteressante. Conceição estava seduzindo o rapaz, talvez com desejo de vingança de uma mulher traída. Mas talvez não estava tentando seduzir de maneira consciente, sem perceber essa mulher, aparentemente infeliz, estava deixando transparecer sua personalidade, revelando sua existência.

No conto “Missa do Galo”, o erotismo ocorre de forma otimizada, visto que se observa o erotismo sugestivo e ampliado no âmbito da sedução. A relação entre Nogueira e Conceição na obra parte de uma transferência de sujeitos a partir do olhar que este tem em função do seu desejo inconsciente que está no Outro. O desejo não se mostra claramente e como sabemos, tudo que é cifrado, ambíguo ou obscuro exige interpretação. Para Bataille, o erotismo está ligado a pulsão de vida em que e busca a perfeição. Esse dialeto é estabelecido em “Missa do Galo” a partir da breve relação entre Nogueira e Conceição, onde ambos buscam uma transferência de sujeito onde o Outro acaba tornando-se então o desejo que seu inconsciente almeja.  Para Lacan, perfeição remete ao inconsciente presente na linguagem do indivíduo, e neste inconsciente está presente o desejo, que é estabelecido a partir da satisfação que o Outro, através da linguagem lhe oferece. Assim, a linguagem do desejo do sujeito se constitui pelo desejo do Outro, a partir do momento que torna o indivíduo seu ponto fixo para alcançar o seu desejo. Bataille nos fala ainda que “(…) só os homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica”. Nesse sentido, é refletido no conto, momentos referentes a sedução e sensualidade no texto literário.  Bataille também diz que o erotismo só é notório, quando há desejo de transgredir o interdito.

Analisando a situação em que Conceição se encontra, podemos acreditar que ela teria motivos para exteriorizar o desejo de transgredir. Traída pelo marido, “acabou achando que era muito direito”, era uma jovem senhora desprezada, sem desejos e ambições amorosas correspondidas. Podemos entender que sua vida amorosa era de aparências, sendo que Meneses vivia traindo-a, e ela aceitava para manter o status de mulher casada. Meneses a tinha como esposa, aquela a quem poderia apresentar para a sociedade, mas seus desejos sexuais eram saciados com outra mulher. Sobre casamento, Baitaille nos diz que “frequentemente o casamento é considerado como algo que pouco tem a ver com o erotismo” (BATAILLE, 1987, p.72), assim, a falta de vigor do casal em “Missa do Galo”, e a não correspondência sexual, e também a descoberta da sexualidade no caso de Nogueira, podem desencadear de alguma forma o erotismo e sedução para outro.

Referências

GLEDSON, John. 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: Editora L&PM, 1987.

LACAN, J. O seminário: livro 5 – as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1998.