Análise do conto “A Chave na fechadura”

Por Ana Luiza Müzel de Sousa & Tammara Savvithna Matos Novikov

A partir da leitura do conto “A chave na Fechadura”, de Cecília Prada, é possível analisar o impacto da intuição do casamento, atrelado a uma cultura machista na qual reprime a sexualidade feminina, assim como o prazer feminino, e objetifica a mulher. O conto é narrado pela personagem Leda, que conta a história do seu casamento, ou melhor dizendo, como se deu o fim de seu casamento de 10 anos, e todas as mudanças na sexualidade e afetividade de seu marido durante esse período.

Leda inicia o conto trazendo o questionamento do que seria o erotismo e discorre acerca da objetificação dos corpos femininos, “seios-nádegas-coxas”, até os clichês, “rendas francesas, freiras violadas, adolescente-versus-mulher madura, coristas nuas de meias pretas” repulsando esse tipo de erotismo, e passa a descrever como o seria:

Das zonas ditas erógenas, parece que na mulher – assim em geral nos delimitam, os tecnocratas da sensibilidade – os que dizem de cá pra lá, dali até aqui, botõezinhos de carne ou de sensibilidade para apertar na hora certa.

Esse trecho traz a reflexão acerca de uma cultura machista que doutrina e controla corpos femininos. Uma sociedade que impõem um passo-a-passo para o prazer, para a libido, o certo e o errado no sexo, o puro e o pecaminoso. Em suma, o extremo controle da sociedade ocidental na sexualidade do indivíduo, mas a notória diferença de liberdade sexual e de explorar o próprio corpo, quando comparado o prazer feminino ao prazer masculino. No livro História da sexualidade: a vontade de saber, de Michel Foucault é abordada a repressão da sexualidade como método de controle em um sistema capitalista que não tolera a dissipação da força de trabalho nos prazeres, a menos que seja reduzido a fim da reprodução.

Leda descreve como seria seu erotismo, evidenciando o intenso desejo que sente, mas após descrevê-lo, afirma “nem sempre, nem sempre”, trazendo para o conto o começo de suas queixas e frustrações quanto a realização de seus desejos e a finalização do seu prazer: “silêncios, frieza dos lençóis, meu corpo abandonado… A cama, é uma dimensão do disparate existencial. Do desacordo de duas solidões. Não. Não divago. Isto tudo é questionamento, ou é vivência muito sobrando pelos poros, não posso?”. A personagem traz à tona a evidência de uma relação que não a realiza sexualmente, e da distância que sente entre o seu corpo e o de seu marido mesmo em momentos de intimidade, o que lhe causa muita solidão e infelicidade matrimonial. Em O erotismo, Georges Bataille fala a respeito do erotismo dos corações, referindo-se a ele como mais livre, por separar a materialidade do erotismo dos corpos, porém o sofrimento seria ainda maior, pois somente o sofrimento revelaria a inteira significação do ser amado. O sofrimento de Leda é enorme, pois ela não sente a união sexual em conjunto com a união dos corações, sente somente a descontinuidade abordada por Bataille.

Sim, éramos felizes. Embora tivesse havido de minha parte uma decepção. Por quê? Ora, meu jovem, meu muito jovem amigo, quase toda mulher se decepciona com o marido ansioso e inexperiente, essa você já ouviu por certo, não? Ele vinha, queria tomar-me sem mais, assim como um brinquedo novo recém-descoberto, meio depressa – aquele carinho, aquela unção da espoja que me passava ao corpo antes… não, nada mais disso. Eu me deixava tomar, mas pensava “não sinto nada”. Esse pensamento era uma pedra que caía na minha solidão, um muro enorme de pedra que crescia sobre nós dois. Eu quis falar, quis dizer a ele, difícil também a expressão, mas falei: “Sinto que está faltando alguma coisa.” Ele tirou o cachimbo da boca (isso, até foi mais tarde, numa noite fria, uns dois anos de casados) e respondeu seco e defensivo: “Não sei do que você que falar. Eu me sinto perfeitamente feliz no casamento. Se você não estiver, pode se separar. (PRADA,1982, p. 11).

Este parágrafo evidencia a infelicidade da personagem no casamento, e apesar de tentar diálogo com seu marido, não obtém êxito. Leda não sentia prazer no sexo e deixa isso muito explícito no texto, embora se sentisse impotente por não conseguir resolver. Além de se culpabilizar pela infelicidade do casal, já que ao decorrer do conto a personagem afirma que eles formavam um casal feliz, pois eles haviam tido filhos, conquistado muitos bens-materiais e que tinham muito momentos em famílias tidos como o ideal de uma família feliz. Quanto a fala de seu marido, demonstra a ausência de interesse em proporcionar o prazer e a felicidade para o casal, se preocupando somente com si próprio. O egoísmo por parte do parceiro quanto ao prazer sexual é comumente encontrado em relações que perduram por longos anos, consequência de uma cultura que objetifica corpos femininos com a finalidade de proporcionar prazer somente ao homem. Outras vezes, o corpo da mulher é tido como um recipiente para trazer a prole ao mundo. Independente do ponto observado, o prazer feminino é totalmente apagado e excluído, sendo que a mulher que se permite a sentir esses prazeres é tida como uma mulher suja, pecaminosa, mulher da vida ou prostituta.

Quando se trata de casamento, Bourdieu afirma que o dispositivo central da inferioridade e da exclusão da mulher é o matrimônio, que está na base da ordem social e convencional para a produção e reprodução da dominação masculina, onde “As mulheres só podem aí ser vistas como objetos, ou melhor, como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é contribuir para a perpetuação do capital simbólico em poder dos homens”. (BOURDIEU, 2003, p. 55).

Cansada da vida que levava com o marido, Leda opta pelo divórcio. Porém, ocorre um momento de intimidade entre ela e o marido que a faz questionar sua escolha. Ela passa mal, e ele a leva ao hospital, cuida dela com carinho e ela se sente amada novamente. “Naquela aproximação, ele se curvou sobre mim, beijou-me, pela primeira vez em tanto tempo. E no nosso sofrimento, fizemos amor”.

“Quando voltou, tinha recuperado a armadura e o distanciamento. Todo inteiro na sua rigidez, o que não se deixava “vencer” por uma mulher. Arrependido da efusão do antes, do deixar-se ir.” Com esse trecho é possível trazer o impacto que a cultura machista traz também aos homens, que o impedem de demonstrar seus sentimentos. O enrijecimento das emoções do marido de Leda, a faz desistir de vez do casamento. Apesar disso, a personagem alega saber que o marido também sofre com aquela distancia toda. O sexo frio, sem o calor das emoções, apenas tecnicidades e acrobatismo vazio, sem o tempero que ela esperava. Amor sem chamas. Ela sempre sonhava com o retorno à época na qual o marido demonstrava carinho e afeto. Desejo intenso e vívido. E mesmo após a separação, ainda aguarda ouvir os mesmos passos no corredor, o som da chave na fechadura anunciando a chegada do companheiro que a amava. Mas, apesar de toda a intensidade e desejo, mesmo após dez anos de casamento, Leda ainda manifestava a timidez em pedir por sexo ao seu marido. Leda deseja o retorno da continuidade entre ela e o marido, e Bataille traz em sua obra um trecho que explica esse sofrimento de Leda com essa descontinuidade:

A própria paixão feliz impele a uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade possível de se gozar, é tão grande que é comparável a seu contrário, o sofrimento. Sua essência é a substituição da persistente descontinuidade de dois seres por uma continuidade maravilhosa entre dois seres. Mas essa continuidade é sobretudo sensível na angústia, na medida em que ela é inacessível, na medida em que ela busca na impotência e no tremor (BATAILLE, 2004, p. 32).

Por fim, após o momento íntimo que o casal teve após muito tempo, o marido de Leda diz ressentido que ela é uma mulher sexualmente madura. A partir disso, vemos que o marido também sente falta da época em que ambos eram jovens e inexperientes. O amor em chamas a flor da pele. Em contrapartida, existe uma lacuna, pois o marido de Leda pode estar responsabilizando-a pela falta de prazer na cama, como se mulheres mais velhas não sentissem prazer como mulheres novas sentem, reforçando mais uma vez o machismo e o controle da sociedade sobre os corpos femininos.

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

PRADA, Cecília. A chave na fechadura. In: Muito prazer. Rio de Janeiro: Record, p. 9-16, 1982.

FOUCAULT, Michel. _____. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001. BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.

11 respostas em “Análise do conto “A Chave na fechadura”

  1. Assim como a personagem Leda era reprimida dentro do seu casamento, nos tempos de hoje o homem ainda insiste em querer tratar à mulher como um objeto de seu uso pessoal e descartala como se não tivesse mais valor para ele. Mas ainda sim agradalo em seus desejos carnais.

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  2. Excelente colocação. Por mais que ocorra mudanças na sociedade, a mulher ainda é repreendida quando é a figura feminina que busca o prazer, o machismo ainda é muito presente.

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    • Verdade. O menino tem todo um estimulo, da sociedade, muitas vezes do âmbito familiar e ter esse contato e já para as meninas é como se fosse algo “errado” a privando de conhecer seu corpo.

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  3. É interessante lembrar que desde cedo o menino tem liberdade em explorar seu corpo, já a menina é reprimida em explorar seus desejos. As mulheres que se permitem explorar esse lado são vistas como mulheres que “não são para casar”, “mulheres da vida” como vocês mesmo disseram.

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    • Realmente Adrielly, essa pauta é realmente muito importante. A maneira como não somente a sexualidade da mulher é reprimida desde a infância, mas também toda a conduta. Sofremos com isso desde a educação dos pais, quando nos repreendem por não “agir como moça” sentando com pernas abertas, por não poder jogar futebol com os meninos, ou ter que falar baixinho porque gritar é “coisa de moleque”. Todas as repressões já vão preparando o terreno para que a mulher adulta aceite e se conforme com a submissão.

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  4. Achei muito interessante a abordagem que foi feita, mostrando como os desejos sexuais femininos são reprimidos. Mesmo com as conquistas e mudanças que ocorreram ainda está na estrutura da sociedade o machismo e patriarcado.

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  5. Gostei muito do seu texto e concordo com ele, o marido provavelmente nem via a esposa como alguém que tem vontades sexuais e foi exatamente isso que acabou com o casamento deles.

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  6. Esta análise foi muito bem construída e bem interessante. É muito importante trazer questões como estas para o debate. Infelizmente muitos relacionamentos estão estruturados dessa forma até os dias de hoje. Muitos enxergam os desejos e prazeres sexuais como exclusivos dos homens, usando o corpo feminino como simples objeto de prazer.

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  7. Adorei sua análise! A sexualidade e o prazer feminino estão sempre em pauta, mas nunca é discutido. Foi sempre assim, a mulher tem que se sujeitar aos prazeres do homem e se abster do que a faz feliz e realizada.

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