Agressividade, dualidade, pulsão e repetição no conto Hot-dog 

Um texto de Gabriel Fernando Fuzzo

Esse texto tem o intuito de analisar o conto Hot Dog, de Leilla A. Fernandes presente no livro 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. Nele conta-se a história de uma dominadora que trabalhava como tradutora, seu ex-amigo e mais algumas figuras anônimas que conduziam encontros sexuais, e são narradas por ela mesma. A dupla de amigos encontrava pessoas anônimas em sites de relacionamentos e tinham um lugar especifico para tais encontros, seguiam a regra que nunca deveria ser quebrada, o de nunca se envolver amorosamente entre si, apenas sexo: ‘’Sexo intenso, anônimo, sem novelo social ou afetivo, sem qualquer conexão com a rotinha diária que levavam a quilômetros dali.’’ (LEILLA, 2012, p. 10)

Tudo era voltado para o menor contato íntimo, para total despersonalização entre os envolvidos, também para que a personagem principal pudesse manter as suas rédeas: ‘’Madame usa máscara, não gosta de beijos, fotos ou gravações’’. Certo dia essa mulher acaba reencontrando seu ex-amigo na rua, tenta chamá-lo, mas o mesmo não houve, então a tradutora dá graças aos céus, pois, ‘’melhor assim’’, ela então é invadida por pensamentos intrusivos que ela tenta suprimir sem sucesso e começa a recordar o passado.

[…]saudade? […]
Naquela mochila às costas, naquela mochila, quem sabe, ele levaria os mesmos apetrechos com quê?… Não, ela balançou a cabeça tentando evitar os pensamentos, não interessa, era outra mulher, vivia outra vida, não queria saber[…] (LEILLA, 2012, p. 10)

Normalmente, na sociedade, vê-se na figura do homem o dominador e a mulher em submissão: nesse conto há a inversão de papeis de gênero, ela quem sempre tomara o controle da situação, porém, acabou se envolvendo demais com esse amigo, acabaram por fazer uma empresa juntos e tornaram-se muito próximos, então acaba ela perdendo as rédeas que venerava: “Que foi feito da mulher outrora decidida, a mulher escandalosamente má, ela, somente ela a deter as redes de qualquer movimento executado entre eles? (LEILLA, 2012, P. 10)

Ela possuía um comportamento muito comum em homens, o de separar o sexo do amor, mas, como sempre o ser humano separando e reduzindo coisas tão complexas a mero binarismo, pode-se traçar um paralelo ao artigo de Elizabeth Grosz:

O dualismo cartesiano criou um fosso intransponível entre mente e matéria, um fosso facilmente recusado, ainda que de maneira problemática, pelo reducionismo. Reduzir a mente ao corpo, tanto quanto o corpo à mente é deixar sua interação não explicada, sem explicação, impossível. O reducionismo nega qualquer interação entre mente e corpo porque focaliza as ações de um dos termos binários em detrimento do outro (Grosz, 2001, p. 55).

Para Bataille (2004) existe o erotismo dos corpos, um erotismo material que preza apenas pelo sexo, uma descontinuidade individual e cínica, enquanto também existe o erotismo do coração, um amor imaterial que preza pela continuidade das relações humanas e há envolvimento de fato afetivo. De acordo com Bataille pode existir uma separação entre os dois erotismos, mas “trata-se de exceções de maneira a conservar a grande diversidade dos seres humanos.”.

A personagem que tenta separar o afeto do sexo, acaba se apegando ao amigo, exatamente devido a esse limiar entre erotismos, ambos são aspectos da mesma essência, dois lados da mesma moeda, a madame não conseguiu separar, porque também desejava a continuidade afetiva com o amigo, o qual a afastava da solidão. A vida é muito complexa para que essas dualidades sejam tão facilmente divididas, mente e corpo, bem e mal, idealismo e materialismo, vida e morte, existe sempre uma sobreposição das faces que aparentemente são opostas, mas que possuem a mesma essência, podemos então resgatar os princípios de Espinosa:

Assim, ao passo que Descartes estabelece duas substâncias irredutivelmente distintas e incompatíveis, para Espinosa esses atributos são meramente aspectos diferentes de uma e a mesma substância, inseparáveis um do outro. (Grosz, 2001, p. 62)

Ela se vê presa nessas lembranças de um amor perdido, sente saudades, se vê no limiar de pulsão da vida e morte, quer reconstruir o relacionamento, mas também destruir, busca continuidade e descontinuidade:

Durante anos, ela se viu imersa na contradição: queria machucá-lo, tripudiá-lo, surrá-lo à exaustão, mas curiosamente, também se pegava com saudades dele, acordava de madrugada querendo notícias suas.
(LEILLA, 2012, p. 14)

A partir das obras de Freud podemos analisar a combinação que as pulsões de vida e morte tem nas relações românticas, a pulsão de vida é a criação de laços afetivos, enquanto a pulsão de morte é a destruição do eu e do outro, como podemos ver em vários trechos do conto: ‘’cabeça jogada prum lado, pro outro, boca roçando na boca de um dos homens, queria ser rasgada [..]

Essa pulsão de morte está intrinsicamente ligada a agressividade, sadismo e masoquismo, que de acordo Azevedo e neto pontuam em análise de o ego e o id, discorrem que:

Em O Ego e o Id, Freud (1923/1996j) afirma que a pulsão de vida precisa encontrar formas de manter a vida ante a tendência à mortífera da pulsão oposta. Uma das soluções pontuadas por ele é o desviar da pulsão de morte para fora do organismo para não provocar a destruição interna. Assim, boa parte desta pulsão se voltaria para o exterior e se apresentaria aí, pelo menos parcialmente, em forma de destruição (Azevedo e Neto, 2015, p. 70)

As lembranças revividas, causam sofrimento a personagem, esta que não consegue fugir, por mais que tente. As lembranças do ‘’amigo morto’’ são intrusivas e ganham a forma de neurose, devido ao corte de relação demasiado traumática para ela.

Freud (1920/1996i) explica que o psiquismo traz à tona conteúdos que nunca foram prazerosos, que despertariam o desprazer por aumentar o quantum de energia. O que o psiquismo aí busca é, pois, uma forma de “domar” esses conteúdos e, assim, lograr a constância, o equilíbrio mental. Entende-se que a excitação excessiva é traumatizante e precisa ser dominada para que não se mantenham níveis internos muito altos que venham a causar um enlouquecimento absoluto. Somente após ter sido efetuada essa tarefa é que seria possível a ação do princípio do prazer.

[..] A resposta que o criador da psicanálise encontrou foi que os conteúdos traumáticos, desprazeirosos, eram revividos em uma tentativa do psiquismo de dominar a energia relacionada a eles, ou seja, vincular ao psiquismo os conteúdos traumáticos e devolver a paz e o equilíbrio ao psiquismo. (Azevedo e Neto, 2015,p. 70-72)

A madame fica irritada, ela perdeu o controle que tanto prezava, sentia saudades do ex-amigo, havia criado um laço, obviamente por causas totalmente humanas, Bataille (2004) já dizia que o ser humano como ser solitario buscava a continuidade em relações afetivas e a mulher havia perdido um ente querido.

Como ela se vê perdendo, o controle sobre o outro e demonstrando a fraqueza e submissão, a madame não quer se ver humilhada, ela então tem o ímpeto de tentar reverter a situação humilhando o seu ex-amigo e demonstrando poder, para ‘’virar o jogo’’, Freud discute sobre as repetições, ela acaba encontrando essa forma para lidar com o trauma, revivenciando os antigos papeis:

A repetição de situações anteriores permitia ao sujeito dominar os estímulos e, deste modo, obter cada vez mais vivências cada vez menos traumatizantes. Desta forma, seria possível reviver algo seguro e conhecido que não colocaria o organismo em cheque, que não o desafiaria, e que o permitiria manter a constância e o equilíbrio (Azevedo e Neto, 2015, p. 73)

O mesmo inconsciente que nos impele a repetir com serenidade comportamentos bem-sucedidos nos leva também a repetir, compulsivamente, atitudes que conduzem ao fracasso. (Nasio, 2013, p. 10)

A relação dos personagens embora que houvesse um relacionamento BDSM consensual, na história percebe-se que era um relacionamento bem tóxico, já que ambos aplicam golpes e traições um ao outro, por final esse ex-amigo acaba roubando o dinheiro da madame. A pulsão de morte muito presente em ambos, os leva a ultra-individualidade e auto destruição, já que viviam apenas pelo desejo:

A satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como a maneira mais tentadora de conduzir a vida, mas significa por o gozo a frente da cautela trazendo logo o seu próprio castigo (Freud, 1929, p. 21). A sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem não domado pelo eu, é incomparavelmente mais forte do que obtida ao saciar um instinto domesticado. O caráter irresistível dos impulsos perversos, talvez o fascínio mesmo do que é proibido, tem aqui uma explicação econômica’’
(Freud, 1929, p. 23).

Como podemos analisar em imagens do sexo de Carlos Gerbase (2006), não se pode cruzar uma certa linha como qual Marques de Sade fez, pois, os atos reproduzidos tem consequências e não se pode manter a intensidade sem a auto-destruição. O conto é muito interessante e pode-se tirar os mais variados estudos da psique dos personagens, o conto também traz uma visão feminina para trama já que é uma narrativa feita por uma mulher e onde há a inversão dos papeis de gênero, pode-se observar também um pouco da hipocrisia da sociedade sobre a qual Foucault discorre mencionado os locais permissivos aos casos amorosos ilegítimos, a burguesia embora tentasse silenciar a discussão sobre o sexo, teve que construir locais para esse tipo de comportamento dito como não convencional, assim como vemos na história onde existia um local secreto para os encontros da madame e seu cachorrinho.

‘’Se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar’’ (Foucault, 1988, p. 10)

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Monia; NETO, Gustavo. O desenvolvimento do conceito de pulsão de morte na obra de Freud. Rev. Subj. vol.15 no.1, Fortaleza, abr. 2015. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000100008
BATAILLE, G. O Erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo; Penguin & Companhia de Letras, 2011.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
GERBASE, Carlos. Imagens do sexo: as falsas fronteiras do erótico com o pornográfico. Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 31, Dez. 2006.
GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu, n. 14. 2001
LEILLA, A. Hot Dog. In. FERNANDES, R. (Org). 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. São Paulo: Geração Editorial, 2012.
NASIO, J. Porque repetimos os mesmos erros. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2014.

Terça de carnaval com começo meio e fim

Por Jéssica Dias da Silva

A história do conto, é baseada em um romance de carnaval, entre dois homens. O conto acontece num dia festivo, onde dois sujeitos se apaixonam ao primeiro olhar. Tendo em vista que relações homoafetivas sofrem grande resistência por parte de uma sociedade preconceituosa e enrijecida, percebe-se, nitidamente, a reação dos indivíduos ao presenciarem uma relação homossexual.

A orientação sexual diz respeito a atração afetiva e sexuais que sujeitos desenvolvem por outros sujeitos, sendo elas heterossexuais, homossexuais, lésbicas, entre outras categorias. No conto de Caio Fernando, a questão da orientação sexual é descrita o corpo dos dois personagens de forma sedutora.

“Um movimento que descia feito onda dos quadris, pelas coxas, até os pés, ondulado, então olhava para baixo e o movimento subia outra vez, onda ao contrário, voltando pela cintura até os ombros. Era então que sacudia a cabeça olhando pra mim, cada vez mais perto” (ABREU, n.p.).

A orientação sexual está ligada a sexualidade humana, e se apresenta de diversas formas em cada indivíduo. Porém, para a sociedade, tudo que foge a norma da heterossexualidade, é difundido como anormalidade, é tratado com desrespeito e algo que deve ser modificado, moldado, para a forma heterossexual. Esse é um dos principais motivos da literatura gay ter sido silenciada por muitas décadas:

A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas, aparentemente, apenas os homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica, o que diferencia o erotismo e a atividade sexual simples como uma pesquisa psicológica independente do fim natural que ocorre na reprodução e na preocupação com a prole. (Bataille, 2004, p. 21).

Por fim, o conto tem em suas últimas linhas um final melancólico, recheado de metáforas. Dá-se a entender que “queda lenta de um figo muito maduro, até esborracha-se contra o chão em mil pedaços sangrentos“, evidencia a morte de um dos personagens e se essa for a intenção, Caio Fernando trata a morte nesse trecho de forma banal, sendo falta de humanidade dos “outros” para com aquela pessoa. E ainda, quando se diz: “figo” enfatizando o estado da fruta, observa-se que há uma irônica intenção de mostrar que o personagem, talvez por ter a coragem de se libertar desse conservadorismo, mostra ser “mais maduro” comparando-se aos outros que o espancaram.

Concluímos que a literatura, não romantizada e com aspectos da realidade, colabora para a formação de ideias, e desconstrução de pré-conceitos, cristalizados na sociedade, pensando nas relações pessoais, afetivas, os papeis sociais, as relações de poder e o conjunto que denominamos social.

REFERÊNCIAS:

BATALLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
ABREU, Caio Fernando. Contos Completos – Caio Fernando Abreu. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. .

O último beijo

Um conto de Thainá Pereira Gonçalves

Sem se dar conta de que era morte, se apaixonou infinitas vezes. É que ela nunca soube a sua origem, também nunca se esforçou para saber, acreditava ser memória ruim. O fato é que ela sempre esteve lá. Bem, nem sempre. Sempre desde que se lembra. Existem tantas lendas sobre a morte e sobre ceifeiros, em tantas culturas, e o que pouca gente sabe é que nem sempre a morte se sabe morte.

Uma tragédia sáfica: a morte não é ossuda, não usa capa preta, nem carrega um cajado. Não essa, as demais não interessam. É alta, possui longos cabelos pretos, pele escura e perfeita como dos próprios Orixás, lábios carnudos que requisitam um beijo com urgência, olhos profundos como o abismo e usa um vestido vermelho como o sangue.

Em algumas crenças a morte define o destino do indivíduo, podendo até mesmo enganá-lo para levá-lo; em outras, ela apenas corta o vínculo com a vida e carrega seu desígnio até o destino final. Bobagem! Num minuto ela sequer sabe que a vítima existe, no outro, por um chamado silencioso e imperceptível da vida, lá está ela diante de uma pessoa sem saber o porquê. Ao menos no início, após anos de profissão, ela sabe exatamente a razão de estar diante de uma pessoa viva.

O problema é que os ceifeiros simplesmente surgem, não se sabe por ordem de quem ou de que forma, mesmo eles jamais obtêm essas informações. O fato é que surgem de acordo com a taxa de natalidade do planeta terra e são jogados aqui como nascem os seres humanos – sem saber de nada e muito menos quem são. A morte, não conhecedora da sua identidade, se deixa intoxicar por sentimentos humanos. Ficam adormecidas até que chegue o momento de uma das pessoas da sua lista deixar o mundo físico, nunca chegam no último minuto, chegam com, no mínimo, duas semanas de antecedência para que o ser humano não parta assustado com alguém desconhecido, precisam exalar confiança antes da hora da partida.

De volta à ceifeira pisciana, ela demorou se notar morte e tinha uma queda por mulheres bonitas. Talvez por artimanhas da vida, talvez por coincidência, demorou ter homens na sua lista, assim, estava dado o desastre. Talvez você não saiba, mas a empatia faz parte da morte. Sentir o que sente o seu humano é fundamental para que, dessa forma, seja capaz de melhor lhe acolher em suas incertezas. Se não forem cuidadosas, as mortes sentem mais que o próprio humano em seu momento final.

Seu primeiro chamado, sua primeira humana, foi uma jovem de 22 anos, suicida, andava sempre na corda bamba da vida-morte-vida. Uma garota franzina, branquela, de olheiras fundas e cabelo preto, curto, de franjinha. Quando com grandes propensões à morte, os humanos podem ver seus ceifeiros dias antes do desastre, algumas vezes até meses.

Quando Cecília viu a sua ceifeira, se afeiçoou rapidamente. É comum com os suicidas, a parte deles que deseja morrer reconhece a morte de imediato, mesmo que conscientemente eles não a percebam. A morte, sem ter consciência de si, sentiu no ínfimo do seu ser o afeto da garota e retribuiu. Trocavam olhares distantes com o coração titubeando (ao menos o de Cecília).

Quando, enfim, trocaram palavras, não se importou quando a dama de vermelho disse “não sei” como resposta à pergunta “como se chama?”. Não notou que a mulher usava sempre o mesmo vestido (raramente os humanos notam esse detalhe, seus olhos foram criados para apagar a relevância de todo o resto). Decidiu que a morte combinava com Eleanor, e assim lhe chamou. A ceifeira carregou esse nome para sempre no buraco que há em seu peito.

Como em uma roda-gigante, rapidamente estavam lá em cima: no ápice da paixão. Sem saber exatamente o que fazia, beijou Cecília com delicadeza e… Nada. Escuridão. Esse é o beijo da morte, o doce beijo da morte, ela sempre dará o primeiro passo, mesmo sem saber que essa é a sua missão. Ao beijar seu alvo, imediatamente o sujeito cai no chão sem vida e na mesma velocidade, sem ter tempo de ver o corpo no chão, os ceifeiros voltam ao sono profundo até o próximo chamado.

Acordou um tempo depois, não se sabe a contagem certa em dias humanos, sentia um peso por dentro como se tivesse perdido um pedaço de si. Lembrava de Cecília, lembrava do beijo, não lembrava de mais nada. Tampouco que Cecília estava com uma corda do pescoço na hora do beijo. É que à morte não é permitido ver as causas que a levam até o seu escopo. Agora estava em um cenário completamente diferente, estava no meio de uma mata, agora os seres humanos tinham outros hábitos e a mulher que lhe chamou a atenção tinha em torno de 50 anos e um vírus de gente branca. Não confiou tão rápido nela. Parte dessa desconfiança se dava ao fato de que a ceifeira não estava completamente empenhada, 50% dela estava embasbacada com a beleza da mulher indígena, 50% ainda tentava entender o que aconteceu com Cecília.

A atração da quase morte de Uyara foi mais forte, não mais não possuía um nome, se apresentou como Eleanor. Ouvia as histórias de grandes guerreiros e de deuses poderosos. Via em Uyara um poder invejável, uma potência de vida que ela não era capaz de compreender. No crepúsculo da manhã, ao pé de uma cachoeira, suavemente passou o braço pela pele nua da cintura de Uyara, que enlaçou o seu pescoço com os braços como quem não soltaria jamais. Mantiveram os olhares firmes, quase que em um duelo, como se medissem quem tinha a maior força de não cair. Eleanor a beijou.

Ausência de luz.

E assim se repetiu – em tantos lugares, de tantas formas, com tantas mulheres – de novo, de novo e de novo. Até que ela desconfiou. Não que era a morte, isso não, mas que perdia quem amava quando seus lábios tocavam outros disponíveis a ela. Esteve na França, no Brasil, na Índia, na Alemanha, na Argentina, na Nigéria, na Somália, na Lituânia, na Finlândia e em tantos outros países. Começou a notar o padrão que a sua “vida” passava a existir quando desejava uma mulher.

Agora, no Rio de Janeiro, com mais noção da vida humana, não apenas acompanhou Laura. Ela se esforçou para ver além do véu, além do ímã. Viu nascimentos, brigas, romances, emoção por homens correndo atrás de uma bola, pessoas fingindo viver uma vida para que outras que não estivessem vivendo a própria pudessem ver… Viu sexo. Foi a coisa mais precisa e leal que viu desde que começou a notar, ficou intrigada, mas não tinha importância. Não ainda.

Laura. Uma menina linda de riso fácil. 20 anos, dois filhos pequenos, cursa fonoaudiologia, trabalha cuidando de uma senhora num bairro nobre, mora na favela. Laura, muito atenta, não demorou a notar Eleanor pelo seu bairro, mas no dia em que comentou, sua mãe disse “não vi ninguém assim aqui, não. Será que é madame procurando empregada? Zefa, mãe do Felipe tá precisando”. Laura não respondeu, mas estava cabreira com a figura da mulher melancólica.

A ceifeira ainda não tinha se notado morte, apesar disso, se sentia cada dia mais atraída à Laura, mesmo tentando resistir. Não queria voltar a sumir e se perder de si, da vida. Certa noite sem lua, encostada em muro perto da casa da sua missão, Laura a abordou. Embora intrigada, não foi grosseira, “você parece perdida. Está bem?”. Ela não tinha uma resposta. Estava bem? O que era exatamente estar bem? Perdida, com certeza, estava. Acenou que sim com a cabeça. Laura não quis incomodar a mulher silenciosa, deu um sorriso sincero com as covinhas à mostra e foi para casa. Pensou que Eleanor era mulher de traficante, só essa explicação justificaria uma mulher tão bonita, tão bem arrumada e tão triste.

Em outra noite mal iluminada, quem estava triste era Laura. De forma quase automática, a morte lhe perguntou se estava bem quando a viu passar. Laura não costumava conversar com estranhos, mas tombou num longo desabafo sobre o trabalho e a maternidade. Como alguém que tinha a mesma mente que ela, a ceifeira a compreendeu e disse tudo que ela queria ouvir. Se encontravam todos os dias no mesmo lugar, a mulher viva com suas queixas da vida, a mulher sem órgãos, presa entre os dois mundos, se queixando da ausência de memórias e das mulheres que perdeu pelos tempos incontáveis como grãos de areia.

-E se você for a morte? – Laura não titubeou em perguntar.

Eleanor estremeceu.

-Não… Não posso. Não devo ser. Não quero ser.

E não disseram mais nada. Laura com medo de estar perto da sua derradeira hora. A ceifeira com medo de simbolizar o momento final de mulheres a quem ela julgou amar. Não se viram por uns dias, todavia o destino é implacável e o momento estava chegando. Observava de longe o cabelo-juba de Laura, a pinta acima da boca, os seios sob a blusa, lembrou do “sexo”.

Laura, de tanto medo, fez um seguro de vida. Contou para a mãe sobre as conversas com a desconhecida. A mãe a levou no terreiro e mandou fazer um descarrego, mas toda noite Eleanor estava lá. Quando é hora, não adianta correr, desviar o olhar ou mudar o caminho. Destemida, Laura foi até a ceifeira e perguntou de peito aberto “você acha que veio me levar?”, “não, não acho que eu seja a morte. Mesmo que fosse, eu gosto de você, gosto da vida que pulsa em você, não o faria”. Permaneceram em silêncio, uma do lado da outra, naquela viela de vista privilegiada para o céu.

-Gosta como? – Laura rompeu as cigarras com olhar decidido à entidade ao seu lado.
-Não sei explicar, pareço querer sempre mais de você.
-Então é tipo uma paixão? – A ceifeira nunca havia pensando em uma palavra para o que sentia, talvez fosse, deu de ombros “talvez”.

A carioca enfrentava tanta coisa todo dia para viver, que preferia acreditar que foi uma crença boba que colocou na cabeça, não podia viver com medo da morte e se sentia atraída por aqueles olhos tão pretos e tristes que a olhavam. Deu um passo firme em direção aos lábios de Eleanor, que a parou pousando as mãos de forma firme sobre seus ombros. “Eu não quero arriscar”, a ceifeira agora pensava ser uma ceifeira. “Eu quero”, Laura não queria se arriscar, na verdade, queria era parar de passar o dia pensando que ia morrer. “Se é pra ser, me deixa ter tempo de te lembrar”. Laura não entendeu, mas consentiu.

Parece mentira, mas nessa hora a morte esteve viva. Cheirou o pescoço de Laura como se tivesse um pulmão, se ensandeceu com cheiro de sua presa, passou levemente os lábios sem permitir que escapasse o menor dos beijos. Pressionou seu corpo contra o da garota de forma a sentir que compartilhavam as batidas aceleradas do único coração que havia ali, todos os sentidos de Laura eram seus também, apertava-lhe a nuca, a cintura, a bunda… E Laura, molhada, cedia. Colocou a mão sob o vestido de Laura de forma intuitiva, a tocou onde pulsava e não parou. Os gemidos baixos e roucos estavam abafados em um semi sorriso perto do rosto da ceifeira. Eleanor sentiu o prazer de Laura quando ela feneceu em seus dedos, então a beijou.

Em uma operação policial, Laura morreu numa “troca de tiros”, 10 balas num corpo de 1,60.

A ceifeira, conectada tal qual estava à mulher, sentiu a dor de ser alvejada por 5 segundos antes de adormecer.

Quando acordou, não mais não sabia quem era. Se é que isso é possível, decidiu não mais se “apaixonar”. Continuou a coletar almas, agora não mais perdida de si, sabia quem era e para onde retornaria. Nunca mais sentiu nenhuma mulher como se permitiu naquela rua estreita do Rio de Janeiro. Vaga pelo mundo com nomes femininos cravados na memória como facas no crânio. Uma linda mulher triste. E assim perdura a tragédia sáfica mais silente dos tempos.

O Animal dos Motéis: um rastejar pelo sexo

Por Bruna Sidinez Rosa

O conto erótico O Animal dos Motéis, da escritora e jornalista Márcia Denser, narra um momento compartilhado entre dois corpos, numa situação pré e pós sexo em que ambos (homem e mulher) mantêm um diálogo banal em um quarto de hotel, numa noite qualquer.

A estrutura do conto é fundamentada no intercalar do diálogo direto dos dois personagens e a narrativa descrita por um narrador personagem onde o espaço é caracterizado por um simples quarto. O narrador, ao tecer a conversa que os indivíduos estabelecem, parece lamentar o enfado da personagem: uma garota submetida e rendida à sina de encontros puramente sexuais “de esperar sem mais esperar, suplicar, implorar por aquilo que sequer tem nome [..].” (DENSER, 2012, p. 276).

Posto isto, pode-se observar, em primeira instância, que o conto é composto pela dinâmica sofrível de envolvimentos sexuais em que duas dicotomias/lados existem: um que sempre anseia pelo romance, solidez e o pertencer não somente de corpo; enquanto o outro não necessita mais além do que apenas o coito, uma alternativa para ‘aliviar’ o tesão. Tal dinâmica pode ser conferida pelas perspectivas do erotismo e pornografia as quais, levando-se em consideração o conto em análise, serão sustentadas pelas concepções de Bataille (2004) e Maingueneau (2010) nas linhas que se seguem.

Em tese, o enredo de O animal dos Motéis é sustentado por um embate entre desejo carnal e o anseio por algo que vá além do puro ofício de se cumprir as competências do prazer. Nesse sentido, é perceptível a troca de argumentos afiados entre personagens os quais evidenciam todo o conflito de expectativas gerado por ambos: “— As mulheres não mudam [..] — Nem os homens [..] — sinto-os pulsar aqui dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até a loucura me penetrando até a loucura” (DENSER, 2012, p. 277). Aqui, há um posicionamento e reflexão por parte da figura feminina do que seria a desenvoltura da figura masculina durante o ato sexual, descrito como solitário, sem tom e cores vivas, culminando em um prazer duplamente solitário “uma tarefa que cumprimos tão distraidamente, tão alheiamente como um violino que se tocasse a si próprio num dormitório de quartel” (DENSER, 2012, p. 277). Como se a mulher e, principalmente seu corpo, fossem usados como alternativa de satisfação sexual, um produto de fácil acesso, prático, gostoso e descartável, ou seja, apenas um instrumento controlado pela ‘soberania’ patriarcal detentora de todo o poder.

Assim, pensando no viés pornográfico dos afetos, nota-se, pelos excertos extraídos do conto que não há sequer integração de afetos eufóricos durante o ato sexual. Há, de certa maneira, um pouco dos afetos negativos que neles, segundo Maingueneau (2010, p. 74) “o que predomina é o caráter distanciado, até agressivo, do olhar. Temos claramente descrição de operações e focalização sobre uma consciência, mas os afetos são negativos e é o fracasso que é mostrado: não se estabelece a menor cooperação entre o homem e a mulher.” Ou seja, as ações do homem estão voltadas a pornografia pura, em prol do “cuspir, separar as coxas e tomar a primeira estocada, recuar, avançar, senti-lo rígido como um cilindro e então capturado de leve, uns cinco centímetros, não mais, e sugá-lo para dentro”. (DENSER, 2012, p. 278). Para além disso, na narrativa, a apologia à Hemingway (e um dos seus contos) é usada pela mulher como metáfora, uma maneira de expressar sua frustração em se sentir um toureiro, espécie de empregada em negociação com seu patrão que só pode ‘empregá-la’ as noturnas.

Refletindo sobre esse contexto Bataille (2004) cita duas variações do erotismo: o erotismo dos corpos que representa bem a dinâmica de produto e negociação, dado que carrega “qualquer coisa de pesado, de sinistro. [..] dissimula a descontinuidade individual é sempre um pouco no sentido de um egoísmo cínico.” (BATAILLE, 2004, P.32). E o erotismo dos corações: caracterizado como livre, em que o sexo é simbologia do erotismo, em que os indivíduos se rendem ao controle do consciente, sem limitações. Em vista disso, o erotismo dos corações pode representar a personagem feminina que, de certa maneira, tenta encontrar no ápice das relações, a paixão, sentimento este que pode ter uma nuance mais abrupta que a do próprio desejo carnal. Enquanto o erotismo dos corpos pode ser caracterizado pelo homem que apenas preocupa-se em saciar suas necessidades instintivas. Um se diferencia do outro pelo fato de haver a troca de afeição entre os amantes, isto é, a entrega de sentimentos, reciprocidade de intenções.

Portanto, em vista das concepções colocadas, percebe-se que a narrativa apresenta traços do pornográfico e erótico (em suas variações). Uma vez que no pornográfico puro não há “[..] nada de tratamento sentimental, nada de pulsão de destruição, nada de toneladas de ciúme, nada de movimento de posse, nada de dinamismo de morte, nada de deterioração por suspeita”. (MAINGUENEAU, 2010, p. 75). Enquanto no cerne erótico, embora haja o viés da satisfação individual e carnal promovido pelo erotismo dos corpos, o amante almeja tanto ser possuído e possuir o seu objeto de adoração, seu “ser amado”, que acaba por gerir um sentimento de intensa paixão configurando o já mencionado erotismo dos corações o qual não é bem sucedido na narrativa de Márcia Denser. Então, o que há de ser feito se a única coisa que resta é a certeza de uma realidade que não pode se materializar, de dois corpos compatíveis no prazer, mas não em sentimentos? Rastejar, Lamento…

Exatamente como Roberto Carlos canta: um desabafo. Um desespero emitido pela alma que sempre se entrega com a mesma esperança viva de juras sinceras. No desejo pelo toque pesado e curioso, o despir com olhos ferozes e o trepidar animalesco ritmado pela explosão de prazeres, há a indagação: Por que se render e ficar aos pés (?). Por que não pedir nada em troca (?). Afinal, será mesmo o sexo um rastejar, um aceitar indomável e carente em virtude do coito (?). A resposta, apesar de silenciosa e surda, é acompanhada pela canção de Roberto Carlos ecoada no aparelho de som que, junto ao quarto de hotel, testemunha o desabafo e a sôfrega ânsia do enfim sentir-se penetrada com e pelo amor, contínuo… Ilimitado.

REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
DENSER, Marcia. O Animal dos Motéis. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. São Paulo: Geração Editorial, 2012. p. 274-279.
MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. Tradução de Marcos Marcionillo. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

O gozo feminino de Juliana Frank endereçado à memória de uma transa

Por Isabela Rodrigues Lopes

Para iniciar as discussões analíticas que norteiam essa atividade, é imprescindível expor a urgência da literatura erótica feminina em um cenário contemporâneo. Isso porque o histórico de papeis de poder na sociedade, nas artes, na literatura, na política ou em quaisquer âmbitos sempre hierarquizou os homens como o topo do poder econômico, político e social e subalternizou as mulheres. O conto narra pelo ponto de vista feminino memórias de transas com um rapaz que a deixou. A ideia é de que a narradora-personagem tinha encontros casuais e eventuais com Martin, a quem ela endereça uma espécie de bilhete: o conto todo segue como uma espécie de carta.

Pensando por esse prisma, a interdição proposta por Michel Foucault (1988) em seu livro A história da sexualidade I: a vontade do saber levanta a discussão sobre o moralismo da era vitoriana e o puritanismo, que propagava uma ideia hipócrita de uma sexualidade contida no contexto ocidental.

Em linhas gerais, também para aproveitar as análises realizadas na pesquisa de iniciação científica que analisamos uma antologia de contos eróticos femininos, titulada o corpo sente: erotismo e autoria feminina na antologia todos os sentidos, essas discussões sobre certa interdição sexual dialogam diretamente com categorias de corpo propostas por Xavier (2007) quando a autora fala de corpos subalternos e corpos disciplinados. Por corpo subalterno, compreende-se por “enorme carência e inferioridade da situação da protagonista” (XAVIER, 2007, p.35) enquanto por corpo disciplinado possui como características principais, a “relação entre a carência e a subordinação” (XAVIER, 2007, p. 59).

Nesse sentido, o conto, ao colocar a mulher como a protagonista e narradora da própria história, dá a percepção feminina do prazer, trazendo às leitoras a ideia de que a mulher pode se dar e provocar o prazer do outro, ao passo que se abre – literalmente – para o prazer que o outro pode oferecer. E aceitar esse prazer e se mergulhar nele é o que, basicamente, Bataille (2004) chama de processo de continuidade. E já que o tópico é Bataille (2004), em seu livro O erotismo, o autor discute a interdição do ponto de vista da ruptura, da transgressão.

Quando a autora escreve “mas já que ainda não tenho este bom tempo, fumo longe da janela e aumento o preço” (FRANK, 2012, p. 50) compreendo que o bom tempo é o encontro da busca do outro. E concomitantemente, Frank (2012) por meio de sua narradora-protagonista se mostra segura de si, pois, entendo o ‘aumento o preço’ como uma auto-validação de que ela vale mais do que os homens a estão pagando.

Outro ponto que pode ser problematizado é como o as linhas supracitadas dão uma ideia de que a mulher tem um valor atrelado a preço e como a prostituição é um dispositivo de poder, visto em Foucault (1988), que visa manter a mulher em estado de submissão. Para além disso, a prostituição é marginalizada, reforçando a ideia de interdição – e a transgressão seria as prostitutas andarem livres pela cidade, longe do território decretado pela sociedade. A analogia se faz contundente se pensarmos na marginalização da literatura erótica, gênero este que é a especialidade da narradora-personagem.

Por uma influência sócio-histórica de uma ideologia falocêntrica, a qual submeteu (e submete) o desejo e prazer sexuais femininos em segundo plano, em detrimento do prazer masculino, as narrativas literárias e semióticas em massa são calcadas no estímulo do prazer masculino até os dias atuais. E Gadelha (2012, p. 8) complementa que “tal domínio fez com que houvesse um silenciamento da voz feminina, de forma que, tanto na vida quanto na arte, a mulher não fosse autorizada a exprimir opiniões e preferências a não ser sob controle e permissão masculinas”.

Portanto, o conto é transgressor ao narrar a experiência sexual e a busca de prazer de uma mulher, como por exemplo no trecho “pois então, tive que preencher meu tempo abrindo as pernas e dizendo seu nome rindo […]” (FRANK, 2012, P. 155). O excerto dá uma ideia de masturbação. O texto é, por fim, escrito e narrado por uma mulher e cujo foco central de todo o ato é a busca feminina por encontrar o seu prazer, ao mesmo tempo que reforça a ideia de que o sexo, para as mulheres está sempre atrelado ao lado sentimental – como discutido em sala de aula.

REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.
FRANK, J. Você é tão simples e eu gozei. In: FERNANDES, R. 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. São Paulo: Geração Editorial, 2012. p. 155-159
GADELHA, M. F. Pornosofias de uma filosoquenga: a prosa erótica de Juliana Frank. [Dissertação de Mestrado]. Fortaleza, 2021, 124 p. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/59733/5/2021_dis_mfgadelha.pdf. Acesso em setembro de 2022.
XAVIER, E. Que corpo é esse?: o corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.

Os efeitos do padrão heteronormativo sobre as representações de si: uma análise do conto Há exatos cinco anos de Glória Azevedo

Por Katiuscia Alves de Oliveira

  1. SOBRE A AUTORA

Glória Azevedo é professora de Literatura brasileira, Literatura Juvenil e literatura contemporânea. Pesquisadora dos estudos de gênero com ênfase em literatura de autoria e temática lesbiana. A autora também desenvolve pesquisas sobre Literatura de autoria feminina. É escritora com dois livros publicados – um livro de contos de temática lesbiana e um livro de poesia com poemas predominantemente de lirismo sobre o amor lesbiano (LINKEDIN, 2022).

  1. ANÁLISE

O conto Há Exatos Cinco Anos, de Glória Azevedo, retrata a relação afetiva e erótica entre duas mulheres, Maria Alice e Lívia. Inicialmente, é apresentado o cotidiano de Maria Alice, marcado pelo despertar solitário, mas que anseia pela eminente companhia noturna de Lívia.

Ainda em momentos iniciais do conto, é possível identificar uma menção aos ritos dos atuais meios de produção: “[…] sair, enfrentar a rua e as pessoas que não me veem” (AZEVEDO, 2006, p. 13); nesse momento, a narrativa apresenta diversas características do sistema capitalista, pautado na produção mecânica que, embora demande mão-de-obra para sua manutenção, vê os sujeitos que a compõe como descartáveis e substituíveis. Ademais, o imediatismo da sociedade moderna se expressa pela incapacidade de reconhecimento do outro durante o cotidiano, afinal, as pessoas possuem diversas atribuições cujo cumprimento é crucial para sua subsistência, e nesse panorama a criação de novas relações é dificultada.

A protagonista aponta a escassez de convites para as confraternizações da empresa onde atua há dez anos, reforçando sua essência dispensável. Contudo, foi nesse meio empresarial, apático e inexpressivo, durante uma dessas reuniões, que Maria Alice encontrou seu amor, Lívia. Desde o primeiro contato, Maria Alice já deixa explícita sua afeição por Lívia, o que desencadeou um primeiro contato sexual ainda nesse dia: “Maria Alice não gosta de cerveja com espuma e, menos ainda, em copo de plástico. Mas bebeu tudo e depois passou a língua nos lábios, para retirar o excesso de espuma. Tudo isso, olhando nos olhos de Lívia” (AZEVEDO, 2006, p. 14). Esse ato deixa evidente o interesse de Maria Alice por Lívia, o que certamente, considerando os próximos momentos da trama, foi correspondido.

Após retratar os encontros periódicos com Lívia, Maria Alice revela uma face menos romantizada da relação, o distanciamento de sua amante durante o dia-a-dia na empresa. Segundo a narrativa, nesse ambiente, Lívia se porta de maneira formal e pouco expressiva, o que despertou em Maria Alice um conjunto de questionamentos.

Ao traçarmos um paralelo com o plano real, podemos identificar que relações como a de Maria Alice e Lívia são comuns, afinal, muitos casais homoafetivos, seja por questões de medo e/ou de autocompreensão, buscam encobrir suas relações para se proteger das reações sociais. Ferreira-Pinto (1999), indica que essa autocensura, ou seja, essa limitação de si mesmo frente aos desejos e representações afetivas, pode ceifar a expressão erótica feminina em todas as suas formas.

A imposição de limites ao erotismo feminino apresenta-se enquanto uma prática social historicamente legitimada e que continua sendo promovida na atual conjuntura, afinal, enquanto os homens são instruídos a expressar-se eroticamente, às mulheres é atribuído um lugar de contenção de seus desejos mais primitivos. Esse aspecto, quando pensado no âmbito das relações lesbianas, torna-se ainda mais problemático, afinal, a exclusão da figura masculina em uma sociedade ainda marcada pela dominação do patriarcado, torna o ato ainda mais passível de censura (FERREIRA-PINTO, 1999).

Posteriormente, Mauro, o mesmo colega de trabalho que convidou Maria Alice para a festa que culminaria no relacionamento com Lívia, convidou a protagonista para o seu casamento que, coincidentemente, seria com sua própria amada. Durante o casamento, após ingerir excesso de álcool, Maria Alice expõe seu desgosto com a situação, afinal, a mulher com quem dormia há dois anos estava se casando com um homem, situação a pouco desconhecida pela protagonista.

Após o evento, Maria Alice pediu transferência de departamento, visando romper relações com Lívia. No entanto, diariamente cedia ao álcool, o que a deixava mais receptiva para a relação. Nesse período, Maria Alice deixava bilhetes diários na mesa de Lívia, que descreviam detalhes sobre a relação que mantiveram ao longo da noite.

Com o passar de três anos, Lívia percebeu que seu marido não representava aquilo pelo qual ela seria prazer, inclusive resgatava memórias de Maria Alice sempre que mantinha relações com ele. Esse desprazer culminou na separação do casal, o que permitiu com que Lívia a Maria Alice permanecessem juntas, sem a necessidade das cartas para a rememoração de suas relações. Ao observarmos essa passagem, somos novamente remetidos a um conjunto de relações cotidianas, estabelecidas para suprir as expectativas da sociedade, ao passo que causam a tristeza e melancolia.

No caso de Lívia e Maria Alice, nota-se que a paixão, evidenciada em maior grau por Maria Alice, causa-lhe sofrimento e desconforto. Como coloca Bataille (2004), a paixão é a busca incessante por algo tido como impossível. É a busca de um acordo comum entre os envolvidos de modo que ambos tenham seus anseios atendidos, o que nem sempre é viável devido a diversas condições não controláveis. Contudo, ao passo que a paixão gera tristeza, em alguns momentos, promove contentamento, assim como evidenciado ao longo da narrativa, em que o período diurno é recebido com pesar por Maria Alice, ao passo que a noite se abre como um universo de possibilidades.

Ao analisarmos todo o trajeto, desde o primeiro contato, até o divórcio de Lívia, é possível notar que a relação entre elas gerou impactos particulares em cada uma. Maria Alice demonstra ser mais livre quanto aos seus sentimentos e desejos, enquanto Lívia apresenta ter receio sobre como as demais pessoas à verão. Contudo, essas diferenças também foram determinantes no quesito qualidade de vida de ambas, pois enquanto Lívia, embora estivesse casada era recebida por Maria Alice ao longo das noites, Maria Alice se sentia frustrada por não poder expressar plenamente seu amor pela companheira. Essa relação nos remete

  1. REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Glória. Há exatos cinco anos. In: FACCO, Lúcia (Org.). Elas Contam. São Paulo: Corações e Mentes, 2006, p. 13-17.
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
FERREIRA-PINTO, Cristina. O Desejo Lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, v. 65, n. 187, p. 405-421, 1999. Disponível em: https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/6082/6258 Acesso em: 08 set. 2022.
LINKEDIN. Glória Azevedo. 2022.

Por uma encruzilhada de “Corpo”: empretecer para dialeticamente existir

Por Suzana P. Vanique Gomes

O enfoque poético de Pabline Fontana no poema Corpo, publicado na coletânea de poemas eróticos de mulheres negras Além dos quartos, do Coletivo Louva Deusas* (p. 51) dialoga com uma questão muito interessante, sendo esta a racialização do erótico, produzindo uma demarcação subjetiva\politica. Parece-me um resgate contínuo para reafirmar o direito do Ser\de Ser, de sentir e de poder sentir. Dado que, a colonialidade e seu modelo universal de Humano se introjetam materialmente e intersubjetivamente, refletindo na objetificação que estes corpos recebem para fins de dominação. O que não seria diferente ao pensar nos dispositivos de controle que recaem sobre mulheres negras, frente ao silenciamento a que estas estiveram expostas historicamente. Logo, demarcar o campo da escrita, é evocar o Eu, evocar o sujeito, evocar a autonomia existencial desse sujeito: uma mulher negra que goza dos próprios sentidos.

Esse pertencimento se dá ao passo que a voz em locução enuncia sua presença “- Há nesse corpo de pele preta!”. A “territorialidade” implícita em cada verso é o erótico em exercício de transgressão, como bem coloca Georges Bataille (2004).

Inclusive, é um atravessamento que faz questionar que imagem nos vem à cabeça quando consumimos uma produção literária, porque eu mesma como mulher negra pensei nisso quando escolhi o meu texto e então refleti sobre como me sinto conectada subjetivamente com alguns deles ainda que o campo do erótico devesse parecer ser tão horizontal…Logo que ter uma mulher escrevendo dialoga com outra questão “De qual mulher estamos falando?”.

O poema contém uma narrativa explicita trazida por Pabline Fontana, fruto de relações de poder implícitas. A mulher preta que deseja estar para além da ótica que acredita que seu corpo é um espaço público, que não obedece à lógica que a secundariza e a distingue socialmente. Falar em primeira pessoa já é um movimento contra-hegemônico. Parafraseando Elizabeth Grosz, “corpos, individualidades, são tecidos históricos, sociais, culturais, da biologia” (Grosz, 2000, p. 84). Eu gostei bastante do momento em que Pabline coloca:

“Há nesse corpo de pele preta
Uma mulher que anseia por vulgaridade!”

Acredito que desejar ser erótica e “ser vulgar” enquanto mulher preta também é uma conquista, porque ao passo que o Feminismo Branco e liberal acredita ser emancipatório pela exposição da nudez, nós desejamos experienciar o cotidiano sem que estejamos em serviço desse olhar objetificante que está à serviço do outro; Ser vulgar distante do estigma, ser vulgar e sensual sem o reflexo estrutural da branquitude. Pensar o erótico como pulsão de vida, das nossas próprias significações de vida, constituição de Ser…Ser uma mulher negra.

Há nesse corpo de pele preta
uma mulher humana, natural!
Uma mulher doce e perigosa

A nuance de ser doce e perigosa se chocando, mas coexistindo, de maneira legítima, fugindo à construção da mulatinização de mulheres negras segundo Lélia Gonzales que fundamenta a personificação da mulher negra exótica\ sexualizada, a dita mulata. Em linha tênue a conceituação de Imagens de Controle à partir de Patricia Hill Collins sobre reservarem a função da “Preta raivosa” como mecanismo de zoormofização (animalização) que se configura como esvaziamento de sua humanidade, em comparação ao ideal de feminilidade branca a que confere uma certa proteção e “donzelismo” ; Logo que mulheres negras não são facilmente vistas em papéis de vulnerabilidade mas relegadas á brutalização de suas imagens. Que são exemplos de funcionamento dos dispositivos de violência simbólica.

É interessante como a ideia aqui de colocar “o Ser em questão”, como discute Bataille, é literalmente o desejo radical de existir. Existir marcadamente enquanto um corpo negro. E assim transpor a homogeneidade que ele é colocado frente a sua socialização, buscando uma assinatura própria. É um conjunto de compreensões que reitera a possibilidade de pensar subjetividade corporificada e uma corporalidade psíquica, transpondo uma noção cartesiana e biologizante.

Sendo um movimento que repensa o antagonismo em se ter um corpo e ser um corpo. Porque se esse mesmo corpo é entendido como fruto de uma sociedade que se mecaniza pela posse e dicotomização em função da sequela colonial circunscrita, estruturando-se justamente em favor de uma base que deseja ser sustentada por uma política de morte, pensando que a morte não é somente literal, mas acontece ainda em vida pela supressão dos nossos modos de sentir. O jogo de versos que é tecido é lirico, e ainda assim produz uma estética que confronta uma certa ética, o que me inclina dizer acredito que a minha escolha foi uma escolha erótica.

REFERÊNCIAS

*Para quem tiver interesse em acessar a coletânea na íntegra, clique aqui.

BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo : Arx, 2004.
BUENO, Winnie. Imagens de Controle: um conceito do pensamento de Patrícia Hill Collins. Porto Alegre, RS: Zouk, 2020.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS, 1983.
GROZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu, n. 14, 2000. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635340/3139
LOUVA DEUSAS (Org.) Além dos Quartos: Coletânea Erótica Feminista Negra. São Paulo, 2015. (Editora Priscila Romio; Projeto Gráfico Jackeline Romio).

Sargento Garcia e a representação de masculinidades transgressoras

Por Guilherme de Souza Cavaggioni

O conto Sargento Garcia, de Caio Fernando Abreu (2018), conta a história de dois personagens: Hermes, um jovem de dezessete anos que acabara de se apresentar ao exército e Sargento Garcia, militar veterano, responsável pela avaliação dos jovens que se alistaram. O conto gira em torno do alistamento de Hermes, sendo também o dia em que conhece Garcia. Posteriormente é dispensado do serviço militar e levado pelo sargento a um motel, no qual Hermes tem sua primeira vez.

A trama se inicia com uma voz chamando por Hermes, enquanto o narrador faz uma narração sobre o ambiente militar que o personagem se encontra. A voz que o chama é do Sargento Garcia, que logo exige a todos os soldados que se levantem e escutem suas ordens. Hermes se apresenta ao sargento e é corrigido diversas vezes, sendo exigido que ele demonstre respeito e o trate como “meu sargento”. Nesse sentido, é possível perceber o erotismo presente na descrição da cena, que apresenta Hermes como um personagem pensativo, jovem e intimidado, que recebe as ordens de Garcia, enquanto este segundo é entendido como o experiente, o mais velho e intimidador, aludindo aos papéis colocados em relações homossexuais a respeito do ativo e do passivo.

Para compreensão dessas relações é importante pensarmos na sexualidade, nesse caso, sexualidades consideradas “desviantes” da heteronormatividade. Foucault (2001), reflete sobre o sexo e os diversos mecanismos sociais de controle, que reprimem e definem o considerado certo em relação ao sexo e a sexualidade. Esse universo da sexualidade nos é imposto, e é a partir disso que nós construímos nossas maneiras de existir, como a heterossexualidade. Segundo De Los Santos Rodriguez (2020), a heterossexualidade não é natural, mas é dada, somos ensinados a sermos heterossexuais, assim como somos ensinados a sermos homens ou mulheres. Esse processo ocorre através da socialização, que é definida como a incorporação das normas e papéis sociais relacionados ao gênero, a sexualidade e outros diversos âmbitos da vida dos sujeitos em sociedade (Piscitelli, 2009).

De Los Santos Rodriguez (2020), ainda discorre sobre a masculinidade e afirma que “o universo masculino dito ideal é traduzido nas categorias de: jovem, heterossexual, cisgênero, branco, forte, rico e viril” (p. 277), ou seja, o homem ideal é aquele mais “masculino”, entendido como ativo, que demonstra força e se impõe, assim como sargento Garcia, compreendido nesse lugar; enquanto Hermes ocupa o lugar de homem jovem, magro, com gostos pela filosofia, sendo entendido como passivo. No texto, podemos encontrar tais aspectos na forma como Hermes é retratado por Garcia, como alguém que não corresponde ao ideal de homem: “mocinho delicado, hein? É daqueles bem-educados, é? Pois se te pego num cortado bravo, tu vai ver o que é bom pra tosse, perobão” (Abreu, 2018, p. 366). Além disso, Hermes descreve o momento em que o Sargento mantém os recrutas “controlados” e diz: “e quase admirei sua capacidade de comandar as reações daquela manada brutal da qual, para ele, eu devia fazer parte. Presa suculenta, carne indefesa e fraca” (Abreu, 2018, p. 366).

Nesse sentido, podemos compreender também o personagem Garcia, o militar que corresponde às normativas sociais do ser homem. Em dado momento, Sargento Garcia nomeia as maneiras em que a sociedade, as instituições, o quartel o “pôs nos eixos […] e que aprendi a me virar, seu filósofo. A me defender no braço e no grito” (Abreu, 2018, p. 370). Denota-se, então, que a definição do ser homem, assim como do ser mulher na sociedade não é uma característica natural, mas imposta, ensinada aos sujeitos desde o nascimento, e Sargento Garcia aprendeu a agir, pensar e sentir de maneiras específicas de acordo com aquilo que lhe era exigido no quartel, em sua sociedade e em sua época. Segundo De Los Santos Rodriguez (2020) “a liderança, a agressividade e a violência, são vistas como pertencentes ao mundo masculino” (p. 278).

Além das identidades, o conto trabalha o erotismo, fazendo-o presente em toda a obra. Na narração, podemos perceber os sentimentos de Hermes a respeito de Garcia e sua postura no rejunte militar com os recrutas: “sem mover a cabeça, senti seus olhos de cobra percorrendo meu corpo vagarosamente. Leão entediado, general espartano […] o mamilo do peito saliente roçou meu ombro. Voltei a estremecer” (Abreu, 2018, p. 365). Ainda é possível perceber as relações de dominação entre sargento militar e um recruta, e de que maneira os olhares, as exigências e as imposições do Sargento Garcia são lidas como eróticas, principalmente interligada a um risco, a algo proibido. Esse ponto é reforçado por Bataille (2004), que diz: “o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito: dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos” (p. 31).

Nesse sentido, a relação entre Hermes e Garcia, em plena ditadura militar é tida exatamente como proibido, que colocaria em risco a vida dos personagens e, portanto, torna a experiência sexual ainda mais transgressora. Assim como aponta Piscitelli (2009), foi por meio dos questionamentos daquilo que foi determinado acerca do ser mulher e do ser homem, que foi possível se denominar novas maneiras de estar no mundo e exercer esses papéis. Dessa maneira, percebe-se que Caio Fernando Abreu, ao escrever o conto, nos apresenta outras possibilidades de masculinidades e do ser homem, ao trabalhar personagens que se relacionam de forma afetiva e sexual com outro homem.

REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. Sargento Garcia. In: ABREU, Caio Fernando. Contos Completos – Caio Fernando Abreu. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 364-375.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: Editora L&PM, 2004.
DE LOS SANTOS RODRIGUEZ, Shay. Um breve ensaio sobre a masculinidade hegemônica. Revista Diversidade e Educação, v.7 , n.2 , 2019, p.276-291.
FOUCAULT, Michel. Nós, os vitorianos. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
PISCITELLI, Adriana. Gênero a história de um conceito: diferenças, igualdade. Heloisa Buarque de Almeida, José Eduardo Szwako (Org.) – São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009 – (Coleção sociedade em foco: introdução às Ciências sociais).

“Para onde você o levou, Martin?”

Por Danielle Ribeiro de Sousa

“Você é tão simples e eu gozei”, é um conto contemporâneo escrito por Juliana Frank e traz a história de uma escritora que vive um momento muito difícil da sua vida, a partida de Martin. A personagem deixa evidente o quanto está desolada com esse abandono e diz logo no começo do conto não saber o motivo de tal ato: “Eu não me lembro bem por que você foi embora. Quase não me recordo de nada além do seu sorriso de foder.” (FRANK, 2012, p. 155).

No conto em questão é notório que a personagem sentia um prazer imenso com a “pica febril” de Martin, que a fazia ter tanto prazer a ponto de chegar ao ápice do tesão, mas de uma coisa Martin não sabia, ele era inspiração literária para a personagem e quando ela se depara com certa ausência, se sente incapaz de continuar escrevendo seus textos. Em certo momento do conto, ela diz não ser escritora e se intitula como “literobocetista”, unindo então suas maiores habilidades “a de escrever e a boceta”. Depois que Martin foi embora, essa escritora começa a se prostituir e esses momentos de sexo são em vão, já que só Martin a fazia gozar de uma forma tão simples.

Nos momentos em que a personagem se deitava com esses clientes, ela diz que nenhum homem sabia do seu talento, talento que havia se perdido em meio tanta dor: “Ninguém sabe que eu sabia escrever. Ninguém imagina que perdi o entusiasmo. Só abaixo a calcinha e ligo o bocetaxímetro.” (FRANK, 2012, p. 159), aqui mais uma vez a escritora cria palavras para fazer relação a sua boceta. Por ser um conto contemporâneo temos o uso constante de figuras de linguagem, como por exemplo a metáfora. No conto, percebemos que acontecimentos fluem na memória da personagem.

Ao ler o conto, ficamos pensando se ele pode ser considerado um conto erótico ou um conto pornográfico, no texto de Bataille, chamado “O erotismo”, ele discorre sobre o fato de que a atividade sexual era comum aos animais (tendo como principal função a reprodução), e só depois o homem a fez como uma atividade erótica. Em outro texto publicado no site Recanto das Letras, onde Carlos Henrique Mascarenhas Pires tenta fazer uma comparação entre o erótico e o pornográfico, ele nos diz que: “Pornografia é pura e simplesmente uma descrição dos prazeres carnais; o erotismo é a mesma descrição aquilatada, com base em um ideal de amor ou da vida social. Tudo o que é erótico é também necessariamente e fundamentalmente pornográfico”.

Ao prestar atenção no título do conto de Juliana Frank, a ideia de se tratar de um conto pornográfico pode ser mais óbvio pelo fato de ter palavras sem nenhum eufemismo, acredito que essa linguagem serve para dar força ao que a personagem sente, para sentirmos um pouco mais de sua personalidade e afirmo que deu muito certo, mas nota-se em algumas passagens do conto o uso de figuras de linguagem, além de uma linguagem mais elaborada, como por exemplo: “Faz doze meses que você se foi. E dez meses que eu não escrevo uma vírgula. Mas vírgulas são coisas abstratas. E escrever é fácil, é só usar poucos advérbios, muitos verbos, alguns adjetivos, amarrar tudo com a ajuda das palavras e experiências vividas e adivinhadas.” (FRANK, 2012, p. 156), aqui esse fato nos leva ao conceito de conto erótico.

Sendo pornográfico ou erótico, “Você é tão simples e eu gozei”, com certeza é um conto maravilhoso da contemporaneidade que vale a pena ser lido, além de mostrar que vale a pena ser tocado(a) e vale a pena gozar de uma forma tão simples.

REFERÊNCIAS
FRANK, Juliana. Você é tão simples e eu gozei. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. São Paulo: Geração Editorial, 2012. p. 155-159.
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
MASCARENHAS, Carlos Henrique. O erótico e a pornografia. Recanto das Letras. Porto Alegre, ago. 2011. Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/artigos/3156330. Acesso em: 08 de setembro de 2022.

O ser mulher: representações do feminino no conto Gertrudes e seu Homem

Por Tiffany Simpliciana de Souza

No conto intitulado Gertrudes e seu homem, Augusta Faro (2004) nos apresenta a triste e solitária Gertrudes, descrita pelo narrador como sendo uma mulher que carregava amarguras doloridas, um sorriso triste e um olhar que esboçava profunda solidão. Compreende-se a partir do trecho: “as amarguras de Gertrudes doíam na alma tropeçante de quem parasse um pouquinho só para observá-las” (FARO, 2004, p. 57), que Gertrudes é uma mulher bastante infeliz, já que a primeira característica apresentada a respeito da personagem diz dessa amargura, que antecede até mesmo o seu próprio nome.

A protagonista do conto se muda para uma cidadezinha pequena e aluga uma casa na qual monta o seu ateliê de costura, trabalhando com tecidos e cores, os quais não costumavam ser vistos por ali. A freguesia de Gertrudes aumenta e seu ateliê recebe inúmeros clientes que escutam a mulher falar e falar sem parar da “grandeza do amor de seu homem” (FARO, 2004, p. 57). A partir desse momento, percebemos o contraste entre como Gertrudes se mostra para os demais moradores da cidadezinha e como é descrita pelo narrador, sendo que ao se mostrar para os outros, aparenta ser uma mulher feliz e amada, diferente do que é descrito no início do conto.

Segundo a autora Adriana Piscitelli (2009), o patriarcado é um sistema social que utiliza-se das diferenças de gênero como base de opressão e subordinação da mulher pelo homem. Pensando nisso, podemos inferir que as vivências de Gertrudes estão atravessadas pelo sistema patriarcal, já que sua relação com Romão é marcada pelas dificuldades de uma relação à distância, pois ele é viajante e trabalha fora, enquanto Gertrudes cuida do lar e do esposo, quando este chega de viagem. Além disso, a figura de Gertrudes está completamente atravessada pela de Romão, “todo mundo que frequentava o ateliê de costura, sempre ouvia as estórias de Romão, esse nome sempre envolto de onírico mistério ruidoso, palpável e, sobretudo, impenetrável” (FARO, 2004, p. 58), o que nos faz refletir sobre Gertrudes e sobre a identidade dessa mulher, que parece ter sido construída de forma simbiótica ao esposo.

Piscitelli (2009), ainda afirma que o patriarcado tende a confinar a mulher no âmbito privado, que está associado ao serviço doméstico e aos afetos. Tal afirmação relaciona-se com Gertrudes, pois a personagem está sempre relacionada ao âmbito doméstico: “tocava a pianola, e dava corda nos relógios, e plantava lírios amarelos nos fundos da casa e girassóis no jardim” […] “e Gertrudes fazia bolos e broa, peta e biscoitos, rocamboles com frutas cristalizadas, tão perfumadas, e abarrotava de ‘quitutes’ os guarda-comida” (FARO, 2004, p. 57-58), sendo que todas essas ações descritas eram em prol de agradar o esposo que chegara de viagem.

Ao longo do conto, percebe-se que a figura de Romão ficou conhecida na cidadezinha, despertando paixões nas mulheres e ciúmes nos homens. Ele era reconhecido nos mercados e seu cheiro era capaz de fazer as mulheres tontearem. Leninha, personagem do conto, descreve Romão como sendo a perfeição em pessoa: “é perfumado, o homem. Deixou no ar um cheiro tão bom que nem dei conta de ir embora dali […] deram-me calafrios. Quando cheguei em casa, tive febre a noite toda. Esse homem veio do começo do mundo, gente!” (FARO, 2004, p. 58-59).

Segundo Bataille (2004) “o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem” (p. 45), sendo assim é perceptível o ar erótico que percorre o conto enquanto Gertrudes conta para todos do seu amor, fazendo com que as mulheres da cidade fantasiem experiências com esse homem e o tomam como objeto de desejo. Em dado momento, Romão é retratado como um “potro de legítima gentileza e incansável ternura” (FARO, 2004, p. 59), enquanto Gertrudes revela para as mulheres as noites de amor que tinha com ele, corroborando com o desejo que todas nutriam por Romão.

No auge desse desejo, reunidas resolveram invadir a casa de Gertrudes, pois queriam possuir Romão e finalmente tocá-lo. Encontraram o homem dormindo, coberto de linho puro e então, puseram-se a descobrir seu corpo até que ele estivesse completamente desnudo. Uma das mulheres tomou seus lábios e os sentiu gelados, assim descobrindo a farsa de que o homem não passava de um boneco, feito de algodão e borracha macia. A inexistência de Romão provoca a frustração e a fúria das moças, que queriam possuí-lo de qualquer maneira e então partem o boneco em vários pedaços para que cada uma possa ter consigo uma parte daquela fantasia.

Percebemos então que a trajetória de Gertrudes é atravessada pela angústia de viver entre a cruel realidade e a idealização criada. Podemos inferir que a vivência em uma sociedade patriarcal, que institui que a mulher precisa da figura masculina para ser plena e completa, pode ser um fator que impulsiona Gertrudes a criar para si uma realidade na qual alcança aquilo que não conseguiu de verdade, vivendo os desejos de se ter um homem que a ama enquanto ela o serve, como dita o patriarcado. Compreendemos assim, que o conto diz de uma crítica à construção do feminino a partir da idealização patriarcal.

A morte de Gertrudes no fim do conto, pode ser considerada uma morte simbólica que indica a impossibilidade de viver sem aquela realidade criada e sem a imagem de um homem que a sustente. Além disso, simboliza a grande dificuldade em libertar-se das amarras patriarcais, representadas como as amarguras de Gertrudes que “iam atrás dela, de tão forte presença que se assemelhavam a vultos de espíritos num acompanhamento solene” (FARO, 2004, p. 58).

REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: Editora L&PM, 1987.
FARO, Augusta. “Gertrudes e seu homem”. In: RUFATTO, Luiz (Org.) 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira: Rio de Janeiro: Record, 2004.
PISCITELLI, Adriana. Gênero a história de um conceito: diferenças, igualdade. Heloisa Buarque de Almeida, José Eduardo Szwako (Org.) – São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009 – (Coleção sociedade em foco: introdução às Ciências sociais).