Um texto de Gabriel Fernando Fuzzo
Esse texto tem o intuito de analisar o conto Hot Dog, de Leilla A. Fernandes presente no livro 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. Nele conta-se a história de uma dominadora que trabalhava como tradutora, seu ex-amigo e mais algumas figuras anônimas que conduziam encontros sexuais, e são narradas por ela mesma. A dupla de amigos encontrava pessoas anônimas em sites de relacionamentos e tinham um lugar especifico para tais encontros, seguiam a regra que nunca deveria ser quebrada, o de nunca se envolver amorosamente entre si, apenas sexo: ‘’Sexo intenso, anônimo, sem novelo social ou afetivo, sem qualquer conexão com a rotinha diária que levavam a quilômetros dali.’’ (LEILLA, 2012, p. 10)
Tudo era voltado para o menor contato íntimo, para total despersonalização entre os envolvidos, também para que a personagem principal pudesse manter as suas rédeas: ‘’Madame usa máscara, não gosta de beijos, fotos ou gravações’’. Certo dia essa mulher acaba reencontrando seu ex-amigo na rua, tenta chamá-lo, mas o mesmo não houve, então a tradutora dá graças aos céus, pois, ‘’melhor assim’’, ela então é invadida por pensamentos intrusivos que ela tenta suprimir sem sucesso e começa a recordar o passado.
[…]saudade? […]
Naquela mochila às costas, naquela mochila, quem sabe, ele levaria os mesmos apetrechos com quê?… Não, ela balançou a cabeça tentando evitar os pensamentos, não interessa, era outra mulher, vivia outra vida, não queria saber[…] (LEILLA, 2012, p. 10)
Normalmente, na sociedade, vê-se na figura do homem o dominador e a mulher em submissão: nesse conto há a inversão de papeis de gênero, ela quem sempre tomara o controle da situação, porém, acabou se envolvendo demais com esse amigo, acabaram por fazer uma empresa juntos e tornaram-se muito próximos, então acaba ela perdendo as rédeas que venerava: “Que foi feito da mulher outrora decidida, a mulher escandalosamente má, ela, somente ela a deter as redes de qualquer movimento executado entre eles? (LEILLA, 2012, P. 10)
Ela possuía um comportamento muito comum em homens, o de separar o sexo do amor, mas, como sempre o ser humano separando e reduzindo coisas tão complexas a mero binarismo, pode-se traçar um paralelo ao artigo de Elizabeth Grosz:
O dualismo cartesiano criou um fosso intransponível entre mente e matéria, um fosso facilmente recusado, ainda que de maneira problemática, pelo reducionismo. Reduzir a mente ao corpo, tanto quanto o corpo à mente é deixar sua interação não explicada, sem explicação, impossível. O reducionismo nega qualquer interação entre mente e corpo porque focaliza as ações de um dos termos binários em detrimento do outro (Grosz, 2001, p. 55).
Para Bataille (2004) existe o erotismo dos corpos, um erotismo material que preza apenas pelo sexo, uma descontinuidade individual e cínica, enquanto também existe o erotismo do coração, um amor imaterial que preza pela continuidade das relações humanas e há envolvimento de fato afetivo. De acordo com Bataille pode existir uma separação entre os dois erotismos, mas “trata-se de exceções de maneira a conservar a grande diversidade dos seres humanos.”.
A personagem que tenta separar o afeto do sexo, acaba se apegando ao amigo, exatamente devido a esse limiar entre erotismos, ambos são aspectos da mesma essência, dois lados da mesma moeda, a madame não conseguiu separar, porque também desejava a continuidade afetiva com o amigo, o qual a afastava da solidão. A vida é muito complexa para que essas dualidades sejam tão facilmente divididas, mente e corpo, bem e mal, idealismo e materialismo, vida e morte, existe sempre uma sobreposição das faces que aparentemente são opostas, mas que possuem a mesma essência, podemos então resgatar os princípios de Espinosa:
Assim, ao passo que Descartes estabelece duas substâncias irredutivelmente distintas e incompatíveis, para Espinosa esses atributos são meramente aspectos diferentes de uma e a mesma substância, inseparáveis um do outro. (Grosz, 2001, p. 62)
Ela se vê presa nessas lembranças de um amor perdido, sente saudades, se vê no limiar de pulsão da vida e morte, quer reconstruir o relacionamento, mas também destruir, busca continuidade e descontinuidade:
Durante anos, ela se viu imersa na contradição: queria machucá-lo, tripudiá-lo, surrá-lo à exaustão, mas curiosamente, também se pegava com saudades dele, acordava de madrugada querendo notícias suas.
(LEILLA, 2012, p. 14)
A partir das obras de Freud podemos analisar a combinação que as pulsões de vida e morte tem nas relações românticas, a pulsão de vida é a criação de laços afetivos, enquanto a pulsão de morte é a destruição do eu e do outro, como podemos ver em vários trechos do conto: ‘’cabeça jogada prum lado, pro outro, boca roçando na boca de um dos homens, queria ser rasgada [..]
Essa pulsão de morte está intrinsicamente ligada a agressividade, sadismo e masoquismo, que de acordo Azevedo e neto pontuam em análise de o ego e o id, discorrem que:
Em O Ego e o Id, Freud (1923/1996j) afirma que a pulsão de vida precisa encontrar formas de manter a vida ante a tendência à mortífera da pulsão oposta. Uma das soluções pontuadas por ele é o desviar da pulsão de morte para fora do organismo para não provocar a destruição interna. Assim, boa parte desta pulsão se voltaria para o exterior e se apresentaria aí, pelo menos parcialmente, em forma de destruição (Azevedo e Neto, 2015, p. 70)
As lembranças revividas, causam sofrimento a personagem, esta que não consegue fugir, por mais que tente. As lembranças do ‘’amigo morto’’ são intrusivas e ganham a forma de neurose, devido ao corte de relação demasiado traumática para ela.
Freud (1920/1996i) explica que o psiquismo traz à tona conteúdos que nunca foram prazerosos, que despertariam o desprazer por aumentar o quantum de energia. O que o psiquismo aí busca é, pois, uma forma de “domar” esses conteúdos e, assim, lograr a constância, o equilíbrio mental. Entende-se que a excitação excessiva é traumatizante e precisa ser dominada para que não se mantenham níveis internos muito altos que venham a causar um enlouquecimento absoluto. Somente após ter sido efetuada essa tarefa é que seria possível a ação do princípio do prazer.
[..] A resposta que o criador da psicanálise encontrou foi que os conteúdos traumáticos, desprazeirosos, eram revividos em uma tentativa do psiquismo de dominar a energia relacionada a eles, ou seja, vincular ao psiquismo os conteúdos traumáticos e devolver a paz e o equilíbrio ao psiquismo. (Azevedo e Neto, 2015,p. 70-72)
A madame fica irritada, ela perdeu o controle que tanto prezava, sentia saudades do ex-amigo, havia criado um laço, obviamente por causas totalmente humanas, Bataille (2004) já dizia que o ser humano como ser solitario buscava a continuidade em relações afetivas e a mulher havia perdido um ente querido.
Como ela se vê perdendo, o controle sobre o outro e demonstrando a fraqueza e submissão, a madame não quer se ver humilhada, ela então tem o ímpeto de tentar reverter a situação humilhando o seu ex-amigo e demonstrando poder, para ‘’virar o jogo’’, Freud discute sobre as repetições, ela acaba encontrando essa forma para lidar com o trauma, revivenciando os antigos papeis:
A repetição de situações anteriores permitia ao sujeito dominar os estímulos e, deste modo, obter cada vez mais vivências cada vez menos traumatizantes. Desta forma, seria possível reviver algo seguro e conhecido que não colocaria o organismo em cheque, que não o desafiaria, e que o permitiria manter a constância e o equilíbrio (Azevedo e Neto, 2015, p. 73)
O mesmo inconsciente que nos impele a repetir com serenidade comportamentos bem-sucedidos nos leva também a repetir, compulsivamente, atitudes que conduzem ao fracasso. (Nasio, 2013, p. 10)
A relação dos personagens embora que houvesse um relacionamento BDSM consensual, na história percebe-se que era um relacionamento bem tóxico, já que ambos aplicam golpes e traições um ao outro, por final esse ex-amigo acaba roubando o dinheiro da madame. A pulsão de morte muito presente em ambos, os leva a ultra-individualidade e auto destruição, já que viviam apenas pelo desejo:
A satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como a maneira mais tentadora de conduzir a vida, mas significa por o gozo a frente da cautela trazendo logo o seu próprio castigo (Freud, 1929, p. 21). A sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem não domado pelo eu, é incomparavelmente mais forte do que obtida ao saciar um instinto domesticado. O caráter irresistível dos impulsos perversos, talvez o fascínio mesmo do que é proibido, tem aqui uma explicação econômica’’
(Freud, 1929, p. 23).
Como podemos analisar em imagens do sexo de Carlos Gerbase (2006), não se pode cruzar uma certa linha como qual Marques de Sade fez, pois, os atos reproduzidos tem consequências e não se pode manter a intensidade sem a auto-destruição. O conto é muito interessante e pode-se tirar os mais variados estudos da psique dos personagens, o conto também traz uma visão feminina para trama já que é uma narrativa feita por uma mulher e onde há a inversão dos papeis de gênero, pode-se observar também um pouco da hipocrisia da sociedade sobre a qual Foucault discorre mencionado os locais permissivos aos casos amorosos ilegítimos, a burguesia embora tentasse silenciar a discussão sobre o sexo, teve que construir locais para esse tipo de comportamento dito como não convencional, assim como vemos na história onde existia um local secreto para os encontros da madame e seu cachorrinho.
‘’Se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar’’ (Foucault, 1988, p. 10)
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Monia; NETO, Gustavo. O desenvolvimento do conceito de pulsão de morte na obra de Freud. Rev. Subj. vol.15 no.1, Fortaleza, abr. 2015. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000100008
BATAILLE, G. O Erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo; Penguin & Companhia de Letras, 2011.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
GERBASE, Carlos. Imagens do sexo: as falsas fronteiras do erótico com o pornográfico. Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 31, Dez. 2006.
GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu, n. 14. 2001
LEILLA, A. Hot Dog. In. FERNANDES, R. (Org). 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras. São Paulo: Geração Editorial, 2012.
NASIO, J. Porque repetimos os mesmos erros. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2014.