O último beijo

Um conto de Thainá Pereira Gonçalves

Sem se dar conta de que era morte, se apaixonou infinitas vezes. É que ela nunca soube a sua origem, também nunca se esforçou para saber, acreditava ser memória ruim. O fato é que ela sempre esteve lá. Bem, nem sempre. Sempre desde que se lembra. Existem tantas lendas sobre a morte e sobre ceifeiros, em tantas culturas, e o que pouca gente sabe é que nem sempre a morte se sabe morte.

Uma tragédia sáfica: a morte não é ossuda, não usa capa preta, nem carrega um cajado. Não essa, as demais não interessam. É alta, possui longos cabelos pretos, pele escura e perfeita como dos próprios Orixás, lábios carnudos que requisitam um beijo com urgência, olhos profundos como o abismo e usa um vestido vermelho como o sangue.

Em algumas crenças a morte define o destino do indivíduo, podendo até mesmo enganá-lo para levá-lo; em outras, ela apenas corta o vínculo com a vida e carrega seu desígnio até o destino final. Bobagem! Num minuto ela sequer sabe que a vítima existe, no outro, por um chamado silencioso e imperceptível da vida, lá está ela diante de uma pessoa sem saber o porquê. Ao menos no início, após anos de profissão, ela sabe exatamente a razão de estar diante de uma pessoa viva.

O problema é que os ceifeiros simplesmente surgem, não se sabe por ordem de quem ou de que forma, mesmo eles jamais obtêm essas informações. O fato é que surgem de acordo com a taxa de natalidade do planeta terra e são jogados aqui como nascem os seres humanos – sem saber de nada e muito menos quem são. A morte, não conhecedora da sua identidade, se deixa intoxicar por sentimentos humanos. Ficam adormecidas até que chegue o momento de uma das pessoas da sua lista deixar o mundo físico, nunca chegam no último minuto, chegam com, no mínimo, duas semanas de antecedência para que o ser humano não parta assustado com alguém desconhecido, precisam exalar confiança antes da hora da partida.

De volta à ceifeira pisciana, ela demorou se notar morte e tinha uma queda por mulheres bonitas. Talvez por artimanhas da vida, talvez por coincidência, demorou ter homens na sua lista, assim, estava dado o desastre. Talvez você não saiba, mas a empatia faz parte da morte. Sentir o que sente o seu humano é fundamental para que, dessa forma, seja capaz de melhor lhe acolher em suas incertezas. Se não forem cuidadosas, as mortes sentem mais que o próprio humano em seu momento final.

Seu primeiro chamado, sua primeira humana, foi uma jovem de 22 anos, suicida, andava sempre na corda bamba da vida-morte-vida. Uma garota franzina, branquela, de olheiras fundas e cabelo preto, curto, de franjinha. Quando com grandes propensões à morte, os humanos podem ver seus ceifeiros dias antes do desastre, algumas vezes até meses.

Quando Cecília viu a sua ceifeira, se afeiçoou rapidamente. É comum com os suicidas, a parte deles que deseja morrer reconhece a morte de imediato, mesmo que conscientemente eles não a percebam. A morte, sem ter consciência de si, sentiu no ínfimo do seu ser o afeto da garota e retribuiu. Trocavam olhares distantes com o coração titubeando (ao menos o de Cecília).

Quando, enfim, trocaram palavras, não se importou quando a dama de vermelho disse “não sei” como resposta à pergunta “como se chama?”. Não notou que a mulher usava sempre o mesmo vestido (raramente os humanos notam esse detalhe, seus olhos foram criados para apagar a relevância de todo o resto). Decidiu que a morte combinava com Eleanor, e assim lhe chamou. A ceifeira carregou esse nome para sempre no buraco que há em seu peito.

Como em uma roda-gigante, rapidamente estavam lá em cima: no ápice da paixão. Sem saber exatamente o que fazia, beijou Cecília com delicadeza e… Nada. Escuridão. Esse é o beijo da morte, o doce beijo da morte, ela sempre dará o primeiro passo, mesmo sem saber que essa é a sua missão. Ao beijar seu alvo, imediatamente o sujeito cai no chão sem vida e na mesma velocidade, sem ter tempo de ver o corpo no chão, os ceifeiros voltam ao sono profundo até o próximo chamado.

Acordou um tempo depois, não se sabe a contagem certa em dias humanos, sentia um peso por dentro como se tivesse perdido um pedaço de si. Lembrava de Cecília, lembrava do beijo, não lembrava de mais nada. Tampouco que Cecília estava com uma corda do pescoço na hora do beijo. É que à morte não é permitido ver as causas que a levam até o seu escopo. Agora estava em um cenário completamente diferente, estava no meio de uma mata, agora os seres humanos tinham outros hábitos e a mulher que lhe chamou a atenção tinha em torno de 50 anos e um vírus de gente branca. Não confiou tão rápido nela. Parte dessa desconfiança se dava ao fato de que a ceifeira não estava completamente empenhada, 50% dela estava embasbacada com a beleza da mulher indígena, 50% ainda tentava entender o que aconteceu com Cecília.

A atração da quase morte de Uyara foi mais forte, não mais não possuía um nome, se apresentou como Eleanor. Ouvia as histórias de grandes guerreiros e de deuses poderosos. Via em Uyara um poder invejável, uma potência de vida que ela não era capaz de compreender. No crepúsculo da manhã, ao pé de uma cachoeira, suavemente passou o braço pela pele nua da cintura de Uyara, que enlaçou o seu pescoço com os braços como quem não soltaria jamais. Mantiveram os olhares firmes, quase que em um duelo, como se medissem quem tinha a maior força de não cair. Eleanor a beijou.

Ausência de luz.

E assim se repetiu – em tantos lugares, de tantas formas, com tantas mulheres – de novo, de novo e de novo. Até que ela desconfiou. Não que era a morte, isso não, mas que perdia quem amava quando seus lábios tocavam outros disponíveis a ela. Esteve na França, no Brasil, na Índia, na Alemanha, na Argentina, na Nigéria, na Somália, na Lituânia, na Finlândia e em tantos outros países. Começou a notar o padrão que a sua “vida” passava a existir quando desejava uma mulher.

Agora, no Rio de Janeiro, com mais noção da vida humana, não apenas acompanhou Laura. Ela se esforçou para ver além do véu, além do ímã. Viu nascimentos, brigas, romances, emoção por homens correndo atrás de uma bola, pessoas fingindo viver uma vida para que outras que não estivessem vivendo a própria pudessem ver… Viu sexo. Foi a coisa mais precisa e leal que viu desde que começou a notar, ficou intrigada, mas não tinha importância. Não ainda.

Laura. Uma menina linda de riso fácil. 20 anos, dois filhos pequenos, cursa fonoaudiologia, trabalha cuidando de uma senhora num bairro nobre, mora na favela. Laura, muito atenta, não demorou a notar Eleanor pelo seu bairro, mas no dia em que comentou, sua mãe disse “não vi ninguém assim aqui, não. Será que é madame procurando empregada? Zefa, mãe do Felipe tá precisando”. Laura não respondeu, mas estava cabreira com a figura da mulher melancólica.

A ceifeira ainda não tinha se notado morte, apesar disso, se sentia cada dia mais atraída à Laura, mesmo tentando resistir. Não queria voltar a sumir e se perder de si, da vida. Certa noite sem lua, encostada em muro perto da casa da sua missão, Laura a abordou. Embora intrigada, não foi grosseira, “você parece perdida. Está bem?”. Ela não tinha uma resposta. Estava bem? O que era exatamente estar bem? Perdida, com certeza, estava. Acenou que sim com a cabeça. Laura não quis incomodar a mulher silenciosa, deu um sorriso sincero com as covinhas à mostra e foi para casa. Pensou que Eleanor era mulher de traficante, só essa explicação justificaria uma mulher tão bonita, tão bem arrumada e tão triste.

Em outra noite mal iluminada, quem estava triste era Laura. De forma quase automática, a morte lhe perguntou se estava bem quando a viu passar. Laura não costumava conversar com estranhos, mas tombou num longo desabafo sobre o trabalho e a maternidade. Como alguém que tinha a mesma mente que ela, a ceifeira a compreendeu e disse tudo que ela queria ouvir. Se encontravam todos os dias no mesmo lugar, a mulher viva com suas queixas da vida, a mulher sem órgãos, presa entre os dois mundos, se queixando da ausência de memórias e das mulheres que perdeu pelos tempos incontáveis como grãos de areia.

-E se você for a morte? – Laura não titubeou em perguntar.

Eleanor estremeceu.

-Não… Não posso. Não devo ser. Não quero ser.

E não disseram mais nada. Laura com medo de estar perto da sua derradeira hora. A ceifeira com medo de simbolizar o momento final de mulheres a quem ela julgou amar. Não se viram por uns dias, todavia o destino é implacável e o momento estava chegando. Observava de longe o cabelo-juba de Laura, a pinta acima da boca, os seios sob a blusa, lembrou do “sexo”.

Laura, de tanto medo, fez um seguro de vida. Contou para a mãe sobre as conversas com a desconhecida. A mãe a levou no terreiro e mandou fazer um descarrego, mas toda noite Eleanor estava lá. Quando é hora, não adianta correr, desviar o olhar ou mudar o caminho. Destemida, Laura foi até a ceifeira e perguntou de peito aberto “você acha que veio me levar?”, “não, não acho que eu seja a morte. Mesmo que fosse, eu gosto de você, gosto da vida que pulsa em você, não o faria”. Permaneceram em silêncio, uma do lado da outra, naquela viela de vista privilegiada para o céu.

-Gosta como? – Laura rompeu as cigarras com olhar decidido à entidade ao seu lado.
-Não sei explicar, pareço querer sempre mais de você.
-Então é tipo uma paixão? – A ceifeira nunca havia pensando em uma palavra para o que sentia, talvez fosse, deu de ombros “talvez”.

A carioca enfrentava tanta coisa todo dia para viver, que preferia acreditar que foi uma crença boba que colocou na cabeça, não podia viver com medo da morte e se sentia atraída por aqueles olhos tão pretos e tristes que a olhavam. Deu um passo firme em direção aos lábios de Eleanor, que a parou pousando as mãos de forma firme sobre seus ombros. “Eu não quero arriscar”, a ceifeira agora pensava ser uma ceifeira. “Eu quero”, Laura não queria se arriscar, na verdade, queria era parar de passar o dia pensando que ia morrer. “Se é pra ser, me deixa ter tempo de te lembrar”. Laura não entendeu, mas consentiu.

Parece mentira, mas nessa hora a morte esteve viva. Cheirou o pescoço de Laura como se tivesse um pulmão, se ensandeceu com cheiro de sua presa, passou levemente os lábios sem permitir que escapasse o menor dos beijos. Pressionou seu corpo contra o da garota de forma a sentir que compartilhavam as batidas aceleradas do único coração que havia ali, todos os sentidos de Laura eram seus também, apertava-lhe a nuca, a cintura, a bunda… E Laura, molhada, cedia. Colocou a mão sob o vestido de Laura de forma intuitiva, a tocou onde pulsava e não parou. Os gemidos baixos e roucos estavam abafados em um semi sorriso perto do rosto da ceifeira. Eleanor sentiu o prazer de Laura quando ela feneceu em seus dedos, então a beijou.

Em uma operação policial, Laura morreu numa “troca de tiros”, 10 balas num corpo de 1,60.

A ceifeira, conectada tal qual estava à mulher, sentiu a dor de ser alvejada por 5 segundos antes de adormecer.

Quando acordou, não mais não sabia quem era. Se é que isso é possível, decidiu não mais se “apaixonar”. Continuou a coletar almas, agora não mais perdida de si, sabia quem era e para onde retornaria. Nunca mais sentiu nenhuma mulher como se permitiu naquela rua estreita do Rio de Janeiro. Vaga pelo mundo com nomes femininos cravados na memória como facas no crânio. Uma linda mulher triste. E assim perdura a tragédia sáfica mais silente dos tempos.

Paraíso proibido

Um conto de Thainá Gonçalves

Eu gozei sangue enquanto você mastigava meu coração. Você sempre foi meio assim… meio mulher, meio furacão, meio sedução. E eu caí. Caí na sua cama com um sorriso nos lábios. Você me navegou como se me conhecesse desde sempre, cada curva, cada arrepio, pareciam fazer parte da sua boca, uma completude perdida em um tempo que nem sei. E eu me abri para você, abri minha blusa para você… Não estou certa de que a ordem seja essa.

Você bagunçou meus lençóis, minha alma, me tragou e me soltou com a mesma despretensão que faz com a fumaça do seu cigarro. Mas eu não sei esvoaçar até o céu, até deixar de existir. Eu ainda estou aqui. Eu deveria ter sido sincera, eu queria mais do que você por algumas horas na minha cama. Eu queria saber o que tem por trás desses olhos de chamas e o que dizem as suas palavras quando não são putarias sussurradas ao pé do ouvido. Quem é você quando você não vem?

O problema é que, além dos meus orgasmos, entreguei a você meu coração. Talvez você não entenda o que se faz com um, e fez o que sempre faz comigo, é, você fodeu também o meu coração. Você me comeu, sem talheres, sem etiquetas, sem guardanapos ou modos. Não foi o suficiente, você devorou o meu coração. Eu estava molhada, suada, cansada, ofegante, sua cabeça estava repousada em minha coxa, havia uma marca de chupão em meu peito, seu cabelo molhado de suor grudado na sua testa, seus olhos refletiam a luz da lâmpada do abajur, você parecia longe, em êxtase; eu disse ‘eu te amo’.

S

I

L

Ê

N

C

I

O

Eu não sabia quase nada sobre você, mas sabia o suficiente: você podia comer uma mulher, mas não podia amar uma mulher.

        Não disse nada, me olhou como um leigo olha um mapa de Paris. Veio pra cima de mim como quem acha um oásis no deserto. Me beijou com ardor. O que isso significava? Um ‘eu também’? Me entreguei. Você me fodeu. No bom sentido da palavra. Tinha urgência em cada toque. Me beijou o ventre. Me arrancou gemidos. Se encaixou em mim. Gozou comigo. Fomos o mar, dilutas em nós.

Você me fodeu.

É, assim, no mal sentido da palavra.

          Me beijou e disse que tinha que ir. Não molhou apenas meu lençol naquele dia. Meus olhos também ficaram molhados. Nunca mais voltou, bloqueou minhas mensagens e ligações. Eu não deveria ter misturado escolha e sorte, cristão e pagão, Bossa nova e Carnaval. Passaram por aqui, alguns outros amores vãos, mas cada orgasmo solitário com gosto de lembrança viva é dedicado a você.


Gênesis

Um conto de Thainá Gonçalves

Ela perdeu o emprego no início da quarentena, desde então presta atenção na beleza que a rodeia e também no seu antônimo. Mantém a casa arrumada, impecável. O marido fanfarrão não perdeu o emprego, inclusive, nem acredita na pandemia nem no vírus nem no número de mortos, acredita no presidente. Faz churrasco com os amigos do trabalho na casa do Marquinho, quase todo final de semana. Ela não vai, se recusa a ir.

Tem sido assim, ele acorda cedo, um pouco mais cedo, transa com o corpo imóvel dela sob seu, a mente dela está sempre longe, às vezes na lista de compras, às vezes na preocupação com a mãe, às vezes na voz da vizinha; então, ele se levanta, toma banho e vai para o trabalho. Ela levanta, abre as janelas de toda a casa, toma uma xícara de café requentado do dia anterior, come um pão feito na frigideira e começa a arrumação, a limpeza do que já está limpo. Começa pela sala, é seu lugar favorito na casa, se identifica com um rosto triste que uma infiltração formou próximo ao sofá. Arruma o quarto, os três, mesmo os que não estão sendo utilizados nem serão (eles tentam ter filhos há três anos, mas, em segredo, ela jamais parou com o anticoncepcional). Limpa a cozinha, organiza os armários (de novo) de novo e de novo. Limpa o banheiro do chão ao teto, torna o box invisível.

A área não é seu lugar favorito, mas é o seu momento favorito. Faz uma pausa, liga para a mãe para ouvir o que já sabe, a mãe também não acredita na pandemia, também não para em casa, a mãe tem setenta anos. Geralmente, ao fim da ligação, ela faz uma prece à nossa Senhora Aparecida pela saúde da mãe. Volta à faxina. Coloca as roupas na máquina de lavar e se senta num toco de árvore ao lado do tanque para ouvir a vizinha cantar. É o único momento do dia em que se sente viva, em que sai do automático. Ela canta Belchior, Raul Seixas e Cássia Eller, um repertório limitado das mesmas canções de sempre, mas para a solitária Marília, um show particular.

Ela fica ali, de um lado o som mecânico das roupas girando, do outro a voz melódica da vizinha. Todo dia os mesmos pensamentos “o que será que ela faz enquanto canta?”, “será quantos anos tem?”, “como será a sua aparência?”, “será que sabe que a escuto?”. Todo dia as mesmas perguntas. Um dia quando estava indo fazer compra, viu o portão da casa do lado aberto, dentro do lote uma casa pequena, velha, com tintura rosa-claro descascada, rodeada por terra batida, um pé de manga aqui, outro ali, o lote era grande; ela esticou o pescoço, curiosa, procurando pela dona da voz, só se deparou com um enorme vira-lata correndo na sua direção e sendo enforcado pela coleira segura por uma corda num pé de manga, ela saiu assustada, o bicho ficou tossindo.

Não almoça, belisca umas coisas que tem na geladeira e se sente satisfeita. Estende as roupas no varal e se delicia com o cheiro do amaciante das roupas quando o vento as sopra. Torce para que o cheiro chegue à vizinha, queria retribuir a gentileza das canções divididas. Vai para a sala, liga a TV, deixa num canal qualquer, ouve sobre as milhares de mortes por dia enquanto passa as roupas de cama e semelhantes.

Às seis horas, em ponto, começa o jantar. Olhos cheios de lágrimas, são as cebolas – as vezes não são, não – o mesmo cardápio de sempre: arroz, feijão, salada, carne e algum legume. Uma amiga, ex-colega de serviço, liga, lhe conta sobre alguma paquera, pergunta como vai o casamento e quando “saem” os filhos, ela não responde, a mulher não nota, não se importa, desligam a ligação. Fecha as janelas e cortinas da casa. Toma banho, se olha demoradamente no espelho, encolhe a barriga, estica os primeiros pés de galinha com a ponta dos dedos, sente-se mais perto do fim da vida do que do início.

Às oito, o marido chega. Beija-lhe a boca, com cheiro de cigarro de palha. Enquanto ele tira sapato, meias e camisa e deixa jogados pela sala impecável, ela coloca sua comida e lhe pergunta como foi o dia. A mesa estava arrumada para jantarem juntos (todo dia), ele diz que irá comer na sala vendo o programa de luta (todo dia). Ele diz que o dia foi “normal”, nem uma palavra a mais. Ela come sozinha na cozinha, ouvindo baixinho música pelo celular. Termina, busca o prato e o copo dele na sala, lava as vasilhas e guarda o que sobrou da comida. Sob o pote de arroz, pega disfarçadamente o comprimido anti-bebês e o toma sem água. Faz café, desde a infância gosta de café após o jantar, hábito roubado do pai, que, como a vizinha, gostava de Belchior.

O marido coça o saco e troca de canal enquanto ela pega seu uniforme do chão e leva para o cesto no banheiro. Ela volta e se senta ao lado dele sem proximidade, ele não a olha. Ficam ali, imóveis olhando ao programa televisivo, ele pensa na moça do RH que recusa as suas investidas, ela pensa em tanta coisa que não pensa em nada. Foi o que dez anos de matrimônio fizeram com eles. Quando o programa acaba, ele desliga a televisão; vai ao quarto, tira o que sobrou das roupas e as deixa jogadas no chão do quarto. Ela fica mais um tempo sentada na sala, olhando para a mancha ao lado do sofá.

Ele vai se deitar, pergunta se ela não irá dormir, ela dá de ombros e responde que precisa arrumar umas coisas enquanto pega as roupas do chão. Ela enrola até ouvir seu ronco, só então vai se deitar.

Todo dia.

Todo dia.

Todo dia.

Mas não hoje. Hoje a corda do varal arrebentou quando ela colocou um cobertor pesado demais. Hoje ela pegou a escada para arrumar o varal. De cima da escada ela viu a vizinha. Vestes simples, riso frouxo, pés descalços, cabelo curto, olhos castanhos intensos, 18 anos talvez. Enquanto cantava ela fazia vasos de barro. O olhar de Marília se fixou nas mãos marrons, cuidadosas, em torno da massa molenga. Ela queria que a vida lhe tocasse daquela forma. A vizinha não a viu. Ela desceu da escada.

Fez tudo exatamente como todo dia. Mas seu pensamento estava longe, estava nas mãos sobre o barro, mãos de barro, mãos-barro. Do barro fez-se o homem. Das costelas a mulher? Fez tudo como exatamente toda noite.

Não foi assim pela manhã. Pela manhã, Marília não quis ser boneca, não aceitou ser receptáculo. Quando o marido saiu, não comeu, não abriu as janelas. Ficou sentada na beira da cama, no escuro, quieta, silente. Pensava nas mãos, no barro, no sol, no cheiro de amaciante. Ligou para uma tia meio distante, pediu abrigo. Pela manhã, Marília nasceu do barro. Saiu da casca e foi ser vaso, jarro, recipiente para a felicidade – ou tentativa dela.

Terapi(c)a do amor

Um conto de Tammara Savvithna Matos Novikov

Já havia algum tempo em que eu pensava nele antes de dormir. Todas as noites o rosto dele me ocorria brevemente, quando já estava mergulhando no sono. Sentia um estranhamento, me julgava. Como poderia estar pensando nele antes de dormir? Mas, contando que não saísse da minha imaginação, ninguém poderia descobrir.

No início, só imaginava o rosto em um sorriso sincero. Mas, não demorou muito para que eu começasse a imaginar nossos lábios se entrelaçando e suas mãos pesadas passeando pelas minhas curvas. Me descobria através do tato. Apesar do erotismo, tudo era sempre muito bem recheado de um romantismo que facilmente me ganharia. Me sentia constrangida por pensar nele desta maneira. Temia imaginar algo mais selvagem, pois não sabia como poderia acabar me comportando diante dele. Já imaginou se ele desconfiasse? Poderia colocar tudo em risco.

Infelizmente, o que eu mais temia aconteceu de maneira muito pior do que poderia imaginar: A primeira vez que sonhei com ele. Jamais esquecerei deste sonho. Eu não sabia nada sobre ele, talvez fosse até casado, ele não tinha uma aparência de alguém tão jovial. Me passava a impressão de ter filhos. Mas nenhuma dessas características que eu pré-julgava me impediam de me sentir absolutamente atraída por ele. Eu chegava ao consultório para mais uma sessão e ele me recepcionava, assim como de costume. Eu havia me preparado para aquele encontro. Passei o meu melhor perfume e usava meu vestido favorito na cor amarela com minha sapatilha azul escuro. Meus cabelos estavam soltos e leves sob meus ombros. E meu coração totalmente disparado. Me perguntava muito se ele estava me achando atraente, talvez todo aquele preparo fosse em vão, talvez não fizesse nenhuma diferença para ele. Quando entrei na sala, já me direcionei para minha poltrona e aguardei ansiosamente ele fechar a porta e sentar-se diante a mim. Não conseguia olhar para nada além de seus olhos castanhos.

–  Como você está? – Ele me perguntou. Nada de diferente, infelizmente.

–  Estou muito feliz hoje, mas um pouco nervosa. – Respondi sem medo, não queria transparecer minha insegurança para ele. Permaneci em silêncio por alguns instantes na esperança de que ele me perguntasse a razão do meu nervosismo.

– Nervosa por quê? – me perguntou após um longo silêncio, quase constrangedor. Ele não era de muitas palavras geralmente, mas, graças a isso, tive minha deixa.

– Porque eu tenho que te contar algo que talvez mude tudo em minha vida. Talvez para melhor, talvez para pior. Só vou descobrir depois que contar, mas sem dúvidas mudará, porque por mais que a sua reação seja neutra, mil e uma coisas passarão pela minha cabeça – respondi suavemente.

Ele cerrou levemente os olhos, como se quisesse me observar melhor. Me senti a própria chapeuzinho vermelho diante do lobo mau.

– Pode falar.

Engoli seco de tanto medo. Será que ele já havia entendido? Ele é psicólogo, provavelmente já está entendendo. Talvez nunca tenha sido segredo para ele. Agora não posso voltar atrás.

– Eu estou apaixonada por você.

Ele me olhava fixamente, sem expressar nada. Talvez ele queira que eu fale mais sobre. Não é para eu me calar agora, tenho que continuar falando. Ele não pode sentir pena de mim. – Eu estou pensando em você todas as noites antes de dormir, já tem algumas semanas. Quando digo que o dia mais feliz da semana é o dia em que venho para cá, é porque sinto como se pudesse tocar o céu ao te ver. Eu amo tanto alguns detalhes que pude notar em você. O jeito que você ri quando eu falo alguma merda. Eu definitivamente amo seu sorriso. Amo seus diferentes olhares. Amo sua voz e o jeito que você fala. E quando eu me abro sobre algumas coisas, sinto como se existisse apenas você no mundo em que eu pudesse confiar. Mas, ao mesmo tempo, eu quero saber sobre você também, me incomoda tanto não saber, te perguntar como está e você me responder tão automaticamente, como se não importasse. Eu me preocupo com você, quero cuidar de você também. Mas, além de tudo isso, eu desejo mais do que tudo ser sua. Nem que seja por apenas uma vez. Você sabe do que estou dizendo. Me desculpa se eu estiver sendo muito inconveniente… eu não quero estar te desrespeitando. Ele me interrompe depois disso.

– Não estou me sentindo desrespeitado, posso-lhe garantir. É realmente muito importante que você traga esse assunto. O código de ética não permite que exista qualquer tipo de relação entre o paciente e o psicoterapeuta, por isso não vamos poder dar continuidade aos nossos encontros semanais. Teremos que encontrar outro profissional para te atender. – Ele me responde com calma, como se nada do que eu disse com tanta intensidade houvesse o atingido. Me sinto totalmente rejeitada. Tento disfarçar a decepção, mas falho horrivelmente. No fundo eu já sabia que seria assim.

Ele se levanta da poltrona preta e vem em minha direção. Eu congelo absolutamente. Não consigo prever o que vai acontecer. Ele para na minha frente e me estende a mão. Penso que é para me cumprimentar… é claro… está se despedindo! Por conta do nervosismo, minhas mãos estão suadas. Passo-as rapidamente na barra do vestido tentando secá-las um pouco e seguro a mão dele, mas não encaixa o aperto de mão. Ele me puxa levemente, sugerindo que eu levante. Eu levanto lentamente sem entender o que está acontecendo. Só consigo olhar pros olhos dele. Ele me olha com um leve sorriso no rosto, quase malicioso. O que será que passa em sua cabeça?

– Agora que eu não sou mais seu psicoterapeuta, se for da sua vontade, podemos tentar explorar alguns dos seus desejos. – Ele me fala em um tom calmo, porém cheio de tesão. Seus olhos me devoram. Sinto cada parte do meu corpo arrepiando e dou um leve suspiro. Estou completamente incrédula. Completamente cheia de desejo. Me sinto transbordar.

– Mas, aqui? Agora? E se alguém entrar? E se alguém nos flagrar? – Respondo-o em tom de preocupação e ele ergue o semblante dando um leve sorriso, estaria achando engraçada minha reação?

Ele solta minha mão com cuidado e se direciona até a porta, e indica que a mesma está trancada.

– Nós teríamos ainda uns 40 minutos se eu ainda fosse seu terapeuta. Acredito que ninguém vá nos incomodar. Mas, eu não estava sugerindo que fizéssemos algo aqui. Isso quem pensou foi você. – Eu fico levemente constrangida ao me dar conta disso. Mas, ao mesmo tempo, ele não agiu como se achasse ruim.

Eu caminho até a ele atravessando a sala. Sinto minha autoestima nas nuvens, como se nada pudesse me impedir de beijar o homem que eu amo. Paro em sua frente e passo o verso dos dedos em seu rosto, admirando seus olhos e lábios em triangulação. Enquanto acaricio seu rosto, estaciono meu polegar em seus lábios. Ele me segura pela cintura. Consigo sentir suas mãos fortes em mim. É tão real o seu toque que até me esqueço que é apenas um sonho. Eu subo minha mão para o cabelo dele e continuo acariciando-o, apoio minha outra mão no ombro dele. Ele me puxa para mais perto impedindo que eu continue acariciando seus cabelos, e me beija. Posso sentir as borboletas em meu estomago com esse beijo tão longo e ardente, não quero acordar nunca. Estou completamente mergulhada num sentimento de paixão, sinto meu corpo flutuar. Nossos corpos tão próximos e quentes, tão romântico, tão carinhoso. Nós dois mergulhados em um beijo tão intenso que me deixa completamente dominada. Absolutamente sem fôlego para me conter.

 Mas, algo me faz lembrar do chão. Aquela tal rigidez dos homens. Continuamos a nos beijar, mas agora sabemos que talvez não fiquemos só nos beijos. A cada segundo sinto-me mais envolvida e completamente inundada. Como ele me tem tão fácil? É porque eu não quero perder a oportunidade de ser invadida pelo homem que eu amo. Quando já me encontro sem ar, ele puxa meu cabelo e começa a beijar meu pescoço até chegar ao pé do meu ouvido e me perguntar cheio de tesão:

– Deixa eu te comer?

– Deixo. Mas, com uma condição. – Ele volta o rosto para mim e olha em meus olhos. Eu prossigo. – Você vai tapar minha boca com a mão, porque eu quero te ver sem nenhuma piedade de mim. –  Ele me olha com cara de safado enquanto balança a cabeça em negativa e responde:

– Seu pedido é uma ordem.

Eros pandêmico ou pequenos ensaios sobre a sofreguidão

Um conto de Luciana Borges

Ámame otra vez/ si te atreves” [Arca]

[como se fora a mulher de Lot]

olhou a tela do celular.

o identificador facial não reconhecia seu rosto com a máscara. digitou o código.

de fato, não devia ir. ainda hoje havia lido mais notícias sobre o aumento dos casos na cidade, as mortes, a necessidade de manter o isolamento, o perigo de.

sucessivas piscadas de luz na tela, para não deixar seu cérebro se distrair do tormento. ei, você não vem? e um emoji fofo de coração partido. leu por fora para não marcar mensagem lida, tirou a máscara, sufocava, precisava pensar. desde o início da pandemia que nada, já estava seca, já estava esquecendo o que era contato com outro corpo. e aquele boy era um velho conhecido, crush habitual, não era nenhum novato do tinder. tá certo que já tinha uns meses que tinha sumido e tinha ressurgido da tumba no meio quarentena mas quem se importa não é mesmo. ela precisava dar. e ele estava bem, tinha garantido que não tinha sintoma e que no trabalho ninguém estava doente. outra piscada na tela. dessa vez um nude!

mas era loucura, devia mesmo esperar, não ia morrer por uma foda. mais de mil mortos todo dia. ela não queria ser um desses mortos dos próximos quinze dias. mas se ela não fosse e depois pegasse covid de outra forma? ninguém poderia saber se. aí além de tudo ia morrer sem um pingo de prazer, oh céus, ela não merecia. que merda ter lido todas aquelas teorias sobre orgasmo, morte, eros, thanatos, blá blá blá.

pensou em pedir que ele viesse e se livrava de se aventurar na rua. mas ele tinha era moto, aquelas horas ia acabar vindo de uber e aí sim ela entraria nas estatísticas de verdade.

olhou de novo a tela do celular. dessa vez apagada. respirou fundo.

pegou a bolsa, as chaves, colocou a máscara, fechou a porta e entrou finalmente no carro. dane-se, é só passar álcool gel.

***

[quando fevereiro chegar]

conheceram-se no protesto, de máscara, ambos. a dele, Coringa, a dela, Dalí.

os olhos dele sorriram, os dela também. falaram sobre como não deviam estar ali por causa do contágio e tal, mas a coisa estava séria né? precisavam fazer algo. apesar de.

foram caminhando e as coincidências muitas. aquele arrepio esquisito das primeiras vistas. ou quase vistas, no caso. o rosto dele ruborizou com um pensamento que lhe fez as calças mais justas, mas ela não viu. ela mordeu o lábio com força até sentir gosto de sangue, e roçou uma coxa na outra, mas ele também não viu porque a máscara e as bombas de gás e o choque.

palavras de ordem gritando nas bocas por trás do tecido, correram e sonharam ser o carnaval, quando se podia beijar qualquer um, arrastar para um canto escuro e trocar fluidos vários no mundo pré-apocalipse. 

***

[status de relacionamento]

casados há vinte anos, finalmente ninguém estranhava que estivessem sempre a pelo menos dois metros de distância e só trepassem sem beijos e abraços, afinal, não se deve brincar com esse vírus maléfico.

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Conto originalmente publicado na Revista Ruído Manifesto, em junho de 2020: http://ruidomanifesto.org/pandeprosa-o-total-de-mortes-nao-e-mais-divulgado/

Notas de (a)mar

Um conto de Letícia Homma Watanabe

Meu bem, você me teve tão fácil e não me valorizou. Eu me entreguei de corpo e alma para você. Me fez acreditar e mergulhar em um mar de amor que achei que fosse profundo e por um instante me peguei fazendo planos com você: nos encontrando, nos abraçando, nos beijando. Então você tirava a roupa e depois me despia. Me levava para o quarto, girava a chave e dentro de quatro paredes me fazia ser sua, só sua. Faríamos daquele momento um instante eterno. Teríamos os corpos um do outro. E então, você me pediria para nunca sair da sua vida e eu me vestiria de branco e você se vestiria de mim.

Mas por algum motivo, você resolveu ir embora da minha vida, mesmo tendo prometido ficar. Você não imagina a dor que eu senti ao ver o vazio que a minha vida se tornou, porque meu maior medo era te perder. Por um instante, só por um instante, você foi meu, me preencheu até eu chorar. Mas que pena que eu fui sua só nos meus sonhos e eu me pergunto: será que um dia você também se atreveu a sonhar como eu?

Mas meu bem, eu te peço por favor, se vier, fique. Se prometer, não descumpra. Meu coração não é yô-yô para ficar brincando, ele sangra de dor, mas também dá amor se você prometer me amar. O que eu mais quero é estar contigo, que faça me sentir mulher e desejada, quero que me faça gritar e revirar os olhos, mas também quero estar na segurança dos teus braços sob os teus beijos delicados.

Volta e me cura pra sempre, porque sempre foi você, é e sempre será. Nenhum outro cara conseguirá tomar o seu lugar. Minhas noites quentes serão frias porque não será o seu toque que eu sentirei alí, não será sua língua e sua boca percorrendo meu mapa, não sentirei arrepios sem suas mãos me tocando e a sua voz nos meus ouvidos para me elogiar.

O silêncio que nos separa me corrói aos poucos, eu não consigo te esquecer. Fale alguma coisa, não suma. Me diga o que sente, não tenha medo. Você me tem de um jeito que nem imagina, meu bem. Se mergulhasse fundo saberia. Eu sou intensidade e tempestade e fogo, mas também sei ser calmaria. E se um dia você resolver voltar para ficar, aposto que o meu coração ainda pularia de alegria e eu me molharia inteira, porque só com você eu sei o que é (a)mar.

O amor para além da carne

Um conto de Fábio de Freitas

Pegou na minha mão. Beijou a minha boca. Encheu de borboletas o meu estômago. Sua mão começou a descer. A minha também. Chegou no ponto fatal. – Não avance mais. – Por que não? Por acaso és virgem? Rio da sua pergunta. Ele se encabula.  – Meu sexo é diferente. – Oi? – Quero ser amado. Tocado. Sentir seu carinho e não um simples vai e vem de corpos. Venha com o seu romance e não se vá. Penetra minha alma, esquenta o meu ser.

Fez-se um silêncio ensurdecedor. É agora. Vou ser dispensado. Todos fogem quando descobrem que preciso de conexão para amar. Mas fui surpreendido com um  beijo na testa e um carinho no coração. Escorreu uma lágrima dos meus olhos. – Você não é um problema. O amor sem sexo continua sendo amor. Gozo só de te ver sorrir. Sinto jorrar de dentro de mim um mar de paixão quando te vejo ressonar. Amor carnal é só um detalhe. Nossa conexão está para além.

Aconteceu. Assim. Como o prazer de chegar em casa numa sexta à noite, depois de um longo dia de trabalho. Sentir o acalento de casa depois de anos fora. Fui penetrado. Mas não foi qualquer penetração, daquelas a que chamamos de sexo, mas sim daquelas que entram, ardem o coração e ficam cravadas na alma.

Duas faces da moeda

Um conto de Charlotte

Ela tinha 35 e ele tinha apenas 17 anos, mas Rosa e José se conheciam há tempos, eram as duas faces da moeda. Ela uma linda mulher, formosa, atraente com seus cabelos vermelhos, longos, cacheados e seus olhos verdes. Ele, era apenas um menino, moreno com seus traços africanizados, parecia ser desenhado de tão belo, um “príncipe” na verdade, mais nem corpo de homem ainda não tinha.

            Tudo começara quando Rosa e José se encontraram numa festinha da Irmandade depois das celebrações, da qual os dois faziam parte. O pai de José o havia deixado na festa e seguido para uma viagem, deixando-o na responsabilidade de Rosa.

            José encontrou a oportunidade perfeita para realizar uma vontade que por tempos vinha mantendo em segredo: seu desejo por ela, mesmo Rosa sendo amiga de sua mãe. Rosa mantinha um carinho materno por José, pois ele era amigo de suas filhas e sempre frequentavam as mesmas festas em casa de amigos.

            Passaram a tarde sorrindo, dançando e conversando com os amigos da Irmandade, até que sobraram na festa apenas os jovens. Ela com sua alma jovial não poderia ficar de fora e ficou incumbida de acompanhar José até em casa juntamente com suas filhas e alguns outros amigos.

            Sem mais nem menos, José aproximou-se de Rosa para conversar e sem pensar, tentou beijá-la. Ela ficou assustada, pois, era a última coisa que ela esperava acontecer no fim daquela festa.

            Assim ele fez até chegar a hora de ir embora. Ela, recém separada, começou do nada a sentir desejo por aquele rapaz que já tinha sua vida sexual bem ativa. Mas, ela não achava certa aquela situação, estava se sentindo culpada antes mesmo de ter feito qualquer coisa com aquele menor.

            Chegou ao fim aquela festa que seria apenas para sua distração, virou um problema a curto prazo em sua vida. José estava bem certo do que queria, até que fez uma revelação para Rosa.

            José diz a Rosa: “Toda vez que eu ia na sua casa com minha mãe, sempre ficava me imaginando na sua cama com você, mesmo sabendo que você era bem casada”. Rosa, assustada com a revelação fica sem reação e responde: “José, que loucura é essa eu tenho idade pra ser sua mãe”. José sorri com aqueles lábios carnudos, cor-de-rosa, dentes brancos com aparelho, sorriso pelo qual Rosa começara se apaixonar. Ela já tinha caído no encanto de José, não havia nada que ela poderia fazer.

            Ao irem embora, Rosa com o carro cheio de jovens, ficou com o duro trabalho de levar José na casa de sua mãe, mesmo sem querer. Pois aquela situação estava mexendo com o psicológico dos dois, nada mais impedia aquele desejo de José ser consumado.

            No meio do caminho, ele pede a ela para parar o carro. Ela mais que depressa procura um lugar para estacionar, José leva a mão em seu rosto para tentar beijá-la, mas Rosa empurra seu peito para sair fora, seu coração estava disparado, os dois se deparam com os olhares encarando um ao outro, o desejo tomava conta.

            Passava mil coisas na cabeça de Rosa, pois, ele era de menor, filho de sua amiga, amigo de suas filhas, frequentava sua casa como amigo da família. O desejo e o tesão só aumentavam, pois, ela não transava desde que tinha separado há quase dois meses.

            O tesão falou mais alto, Rosa não conseguiu se conter e acabou pulando no colo de José ali mesmo dentro do carro. Ele a beijava com tanta vontade, apertava seus seios em seu rosto como se tivesse sonhado com aquele momento, mordia-lhe no pescoço, passava a mão nas curvas sinuosas de Rosa, apertava suas nádegas e olhava no fundo dos olhos dela e dizia o quanto ela era linda e maravilhosa, a mulher dos seus sonhos.

            Rosa só pensava em tudo que poderia lhe acontecer de ruim depois daquilo, mas mesmo assim não conseguiu ceder ao desejo que estava consumindo a sua vagina. O desejo era tão intenso que nem camisinha pensaram naquela hora, Rosa com um vestido bem senhora, levantou, arredou sua calcinha e sentou bem devagar sentindo cada centímetro do membro enrijecido de José, estava tão molhada que o pênis de José entrou mais que depressa dentro de Rosa.

            Ela gemia e dizia o quanto ele era gostoso, como poderia um rapaz tão jovem saber como fazer uma mulher ficar tão louca de prazer, pois, José introduzia com tal delicadeza na vagina de Rosa, que só fizera ficar mais apaixonada por ele. O sexo foi ficando mais quente, José mais que depressa foi aumentando a pressão do ato e lhe concedendo desejos, olhando sempre no fundo dos olhos de Rosa e lhe deixando bem claro o desejo que ele sente por ela.

            José fez com Rosa, tudo que sonhara. Rosa gozou de um jeito que nunca havia gozado, ainda mais com uma pessoa que nunca imaginou que lhe teria desejo, que sempre tratou como um filho, um amigo. Mas, Rosa aproveitou aquele gozo como se fosse seu último, pois, não sabia que poderia acontecer depois daquela noite.

            Depois que Rosa e José consumaram o ato sexual, nem se quer haviam tirado a roupa, apenas as ajeitaram, abriram o vidro do carro, tomaram um ar, voltaram a consciência, pois, aquela atitude tirou os dois de órbita. Ela mais do que sem graça, mal falava com ele, José um moleque só sabia dizer o quanto tinha gostado, sorrindo com aquele belo sorriso, todo o tempo perguntando quando eles se encontrariam de novo para mais sexo.

            Rosa, muito pensativa durante o caminho, mal respondia José, não tinha muito o que dizer, o deixou na casa de sua mãe e despediu-se com um beijo molhado e mordendo nos lábios de José, disse-lhe: “Essa noite não deveria ter acontecido, mas gostei demais e terá que ficar entre nós dois, ninguém poderá saber”. José concordou não dizer nada a ninguém, mas fez Rosa prometer que teria outro encontro com ele o mais breve.

            Os dois se despediram com mais um beijo e ele olhou no fundo dos olhos dela e disse que amou aquela noite e que nunca esqueceria ela, que nada aconteceria, pois ele já era homem e sabia o que ele queria.

            Ela foi embora com um sorriso que não cabia em sua boca, pois, depois da sua separação, estava depressiva, triste, desiludida da vida, seu ex-marido tinha acabado com seus sonhos e José seria um recomeço na sua vida. Rosa sabia o que poderia enfrentar pela frente, mas estava disposta desde que não afetasse as pessoas que estavam ao seu lado.


O chafariz

Um conto de Christopher Juan

O sol crepitava em tons amarelo-alaranjado. Após a repentina, passageira, mas brutal chuva de verão que caiu sobre a Vila de Nossa Senhora do Patrocínio. O relógio da casa dos Damas soava os sinos.

– Sinhozinho; Sinhozinho; Sinhozinho Manoer, ocê me pediu para lhe alertar quando desse meio-dia…Pois já é! – Alertou Zumira como se fizesse algo em segredo.

–  Eu escutei Zumirinha, já estou me vestindo; mas mesmo assim lhe agradeço por ter lembrado. Minha camisa vermelha onde está? –  Perguntava Manoel, um tom rubicundo sobressaiu em sua face. Lembrando a última vez que usará a camisa vermelha de linho.

– A de linho Sinhozinho? – Zumira baixou os olhos. –  A tardezinha anteontem tava varrendo a passarela do jardim perto dos chafarizes ocê acreditas que achei ela lá dentro tava que era só lodo.

–  Sério? – Manoel quis confirmar; virando-se para a janela olhou abaixo para o jardim visualizando o chafariz. – Bem capaz, que deixei as janelas abertas Zumira, e uma ventania tenha levado para o jardim.

– Ventania forte essa!? – Zumira encarou.

Manoel não disse nada.

– Pois bem, Sinhozinho Manoer eu vou passar a camisa. – Zumira saiu do quarto e começou a descer as escadas. Ainda no alto, nos últimos degraus da escada confrontou os dois gigantescos quadros do lado oposto, olhou para o quadro da falecida Senhora Reia pela qual nutria profundo respeito e admiração. Observou pela milésima vez a forma que segurava um lírio negro entre os sutis dedos. O quadro conservava bem o aspecto de Reia de cara fechada de fotografia. Ainda que em suas lembranças o semblante acolhedor; repousante sobressaia nas memorias. Não achava justo que o quadro ao lado dela fosse dele do Senhor Crones. Apesar de ser o viúvo.  A opulência do quadro contrastava com o anterior. Retratado de fraque o Senhor Crones estava em um campo durante o dia e atrás uma locomotiva fora pintada expelindo fumaça aos ares. Zumira queria do fundo de seu coração que o trem o partisse em pedaços.

– Zumirinha está pronta? – Perguntou Manoel chegando na mesa onde Zumira passava a camisa.

– Faz favor pega mais brasa no fogão!

– Aqui Zumira.

Zumira abriu com habilidade o pesado ferro de passar. Manoel observou as brasas se avermelharem à medida que Zumira assoprava dentro do ferro; labaredas de fogo se acenderam e logo Zumira fechou o ferro. E terminou de passar a camisa que agora brilhava.

– Tome, ocê cuida viu que linho é difícil de passar.

Manoel pegou a camisa, beijou a mão de Zumira e foi em frente ao espelho do salão de entrada do casarão.  Vestiu a camisa, que lhe acentuava muito bem. Os cabelos pretos, os olhos amêndoas e a pele morena.  Passou a camisa para dentro da calça de cintura alta e calçou as botas de montaria.  Quando as duas portas do salão de entrada bateram e logo em seguida se fecharam, Zumira veio pé ante pé até a janelona do salão olhou pela renda da cortina. Viu Manoel conversar com o cavalariço que já esperava com o cavalo tordilho selado. Manoel montou e foi-se em direção a Vila, sumindo na poeira e no sol que agora já não ocupava mais o apogeu do céu. 

Descendo a Serra do Cruzeiro, Manoel virou o cavalo em direção a mata fechada, passou por uma ponte de madeira; que rangeu com o peso e a rapidez. Manoel, viu um tom alaranjado aumentar no final da mata, começou a sentir calor. Passou mais uma ponte que fez tilintar uma sineta abaixo dela. Chegou ao descampado e consegui visualizar uma fogueira gigantesca no acampamento dos ciganos. O calor aumentou.

– Olá, olá veja se não é o Senhor Manuel. Meu irmão lhe falou da cerimônia de hoje?

– Olá Jasmim! Sim ele disse, porém não imaginava que fosse desta forma.

– E vocês gadgés sabem algo além do que julgam? – Jasmim levantou o canto da boca em sinal de desdém. Desceu do tronco que antes escalara e observou Manoel amarrar o cavalo.

Manoel terminou de amarrar o cavalo; que agora bebia água naturalmente junto dos outros. Encarou Jasmim; tinha doze anos; cabelos negros como a noite e olhos claros que reluzia como a lua. Vestia-se agora diferente do que tinha já visto; ostentavam um lenço roxo transpassado e possuía várias flores e pequenas plumas no cabelo. Que parecia ter sido penteado por outra pessoa e depois ela decidiu dar seu toque especial. Manoel decidiu responder.

– Sei algumas coisas, todavia quem sabe você não possa me mostrar mais.

– É – Respondeu Jasmim que correu quando viu seu irmão se aproximar.

Manoel voltou seus olhos para Miro, vinha andando para a entrada do acampamento, ao seu fundo o fogo ardia em labaredas enquanto quase que o acampamento inteiro circulava a fogueira cantando e dançando. Calçava botas como as dele, uma calça preta que se ajustava na cintura com uma faixa preta enrolada e uma camisa laranja de mangas longas.

 – Meu Manoel vossa graça chegou!  Nem escutei a sineta. Claro olhou para trás abafada com os batuques – Pronunciou Miro.

– Por favor não me chame assim. Pediu Manoel sério.

– Meu Manoel? – Interrogou Miro.

– “Vossa graça” – repetiu Manoel.

Miro abraçou Manoel rindo.

– Venha vamos você vai gostar! – Chamou Miro.

– Não, não, não me espere, me explique não quero causar embaraços.

– Certo, vou lhe explicar. Lembras que te disse que o meu tio havia falecido. “Entoces” é bem simples. Nós queimamos.

– O seu tio? Perguntou Manoel assustado.

– Não apenas ele. Tudo, pelo menos o que era dele, as vezes para o recomeço e preciso se esquecer. – Manoel observou as pessoas elas sentiam a dor da perda era notável, algumas mais que as outras. Mas de alguma maneira entediam o que ela significava. Manoel observou as crianças suas distorções que a correria e o efeito das chamas no ambiente faziam nelas. Viu a senhora que perdeu o marido foi cumprimentá-la e lembrou do dia em que Zumira contou das senhoras que lerão sua mão na praça da cidade e disseram que ela teria uma das maiores alegrias da vida logo; logo. Relembrou a alegria e o entusiasmo de Zumira…Rindo. Parou de repente quando viu o olhar da Senhora que olhava séria em suas mãos. Uma gota de lagrima pingou em sua mão direita.

– Desculpe- me filho. Pediu a senhora.

– Não foi nada! –  Respondeu Manoel que agora escutou os assobios de Miro ao fundo. E foi-se.

– O que aconteceu? O que minha tia disse a ti? – Questionou Miro.

– Nada. – Simplificou Manoel.

– Vamos, venha; não podemos ser vistos.

Miro soltou o cavalo tordilho de Manoel. Pegou seu cavalo preto e saíram galopando juntos. O sol se rendia completamente ao alaranjado neste momento. Colorindo as nuvens em dúbias colorações de vermelho e laranja.  Quando a sineta da ponte soou. Algo saiu de trás das árvores.

Os dois galopavam juntos. Manoel parou para prestar atenção na maneira que o cabelo negro e liso de Miro sacudia ao ar. O galope fazia as duas partes do cabelo crescer e cair novamente nos ombros de Miro.

Chegaram na encosta do primeiro monte que juntos com os outros maiores formam a Serra do Cruzeiro. Deixaram os cavalos pastando em uma moita de capim e ervas abaixo; e escalaram o pequeno morrote que dava em uma gruta cravada em um canto escondido. Dentro Miro chama Manoel baixinho – Venha mais rápido! – Sentindo o frio das pedras em suas mãos; Manoel consegue escapar dos cipós que atrapalhavam teu caminho até Miro. Agora era o ar que gelava teus pulmões; conforme adentrava mais adentro. Tropeçou uma, duas, três vezes antes de alcançar Miro que o ajudou a se sustentar antes do quarto tropeço.

– Quieta chão! – Zombou Miro.

– Se trata dessa quase escuridão já está de tarde, e sabes como é perigoso andar na Serra a noite, ainda mais na gruta. – respondeu Manoel.

Miro balançou a cabeça concordando. Mas em um impulso quase imperceptível se não fosse o impacto dos corpos se batendo entrelaçou Manoel em um abraço forte. O sangue correu mais forte. Sentir o calor de Miro no meio do ar gélido era uma sensação extremamente prazerosa. Mas percorrer o grosso de seu pescoço e sentir como se madeira recém cortada se mistura-se com tangerina, pimenta preta e alecrim era inebriante. Miro para descrever o outro lado do abraço sentia a pele fria de Manoel como um acalento para a sua encontrava paz, sossego e tranquilidade. Era como se a frieza de Manoel arrefecesse o coração em chamas de Miro. E disso ele tinha medo. Pararam o aperto bruscamente.

Ouviram barulhos ao longe de dentro da gruta e temeram animais ou coisa pior: “caçadores!”.

– Vamos subir a Serra! Para o casarão antigo. Zumira deve ter descido ao fim da tarde para a casa da Vila no centro. Meu pai mandou descer para o jantar; pois Madalena teve de ir a Água Suja pagar promessa. E Senhor Crones não sobe a Serra em dias de semana com todo o trabalho de administrar a ferrovia.  – Elaborou engenhosamente Manoel.

– Certo! – Confirmou Miro feliz.

Quando chegaram ao casarão o portão de ferro estava com o cadeado passado o que significava que as suposições estavam certas. Deixarão os cavalos no estábulo e tentaram entrar pelos jardins dos fundos o que não deu certo já que travas de madeiras seguravam as duas portas.

– Que fonte mais engraçada? – Riu Miro. – Quem é este aí teu avô? – Apontou para a estátua que ficava a caminho do chafariz.

–  Aquele lá é Hermes! O mensageiro dos Deuses. Protetor dos diplomatas, dos comerciantes e….

– Manoel não terminou. Olhava Miro com um sorriso sarcástico.

–  E dos ladrões – Complementou Miro.

– Hahaha então você sabia de quem representava?

– É claro!

– Sempre associam nós ciganos como ladrões. Claro que alguns de nós pode ser! Como vários seus são também. A diferença e que escolheram nos marcar.

– Eu não marco – Respondeu Manoel virando- se para o outro lado para observar o quase pôr do sol.

–  Você é diferente Manoel assim como eu. Mas se tratando de meu caso sou duplamente distinto. Eu estava pensando esses dias, o que vós dissestes: que vosso coração as vezes se torna uma bola de gelo à la Monte Everest. Não tem problema, pois o meu é o centro da Terra com altas temperaturas e rotação acelerada.

Manoel virou-se para Miro que estava completamente nu suas roupas estavam ao pé do chafariz. Manoel sentiu em sua cabeça uma sensação de enlevo. Sentiu suas roupas lhe apertando e queria se desvencilhar delas. Tarefa que Miro ajudou. A camisa voou aos ares e se prendeu no caduceu de Hermes no alto da estátua. Enquanto a água do chafariz jorrava abaixo. Manoel abaixou e sorveu um gole de água. Ao qual Miro parecia estar sedento e não recusou. Sentiu a água fria sair da boca de Manoel e passar aos poucos bem devagarinho pela sua boca, pela língua e pela garganta engolia cada mililitro na esperança de que acabasse com sua sede. Viram e ouviram cachoeiras. Ambos se sentiam como pedras pequenas em uma correnteza sendo totalmente percorridos e levados. A frieza da água durou pouco foi substituída pelo calor… que só diminuiria depois; ainda que por pouco tempo.

Entraram no casarão pela janela lateral do corredor. Depois de um tempo dentro de casa os dois escutaram o portão se abrir violentamente. Miro se escondeu na cristaleira da sala de jantar.

– DESCOBRIU…. DESCOBRIU……DESCOBRIU – Era Zumira entrara gritando esbaforida. Seu pai ouviu no bar da cidade que o ocê Manoel Damas estava no acampamento com aquele povo. Como faz isto comigo? Prometir a vossa mãe lhe proteger dele, mas como faize isto.

– Calma, calma – Ele sabe apenas isto? –  Perguntou Manoel sério?

– Diz como se fosse pouco. O senhor Adamastor está atrasando a criatura, ainda não selou os cavalos para a carruagem… ele vai subir a serra e disse que vai partir-lhe ao meio por fazer passar vergonha na Vila. Diz que vai lhe dar uma surra na porta da Igreja matriz perto da cruz de Cristo na praça para o povo da vila todinha ver a vergonha de filho que ocê seres. – Disse de uma vez.

– NADAA DE NOVOOO, NADA DE NOVO, nada de novo. – Manoel foi emudecendo a voz. Sentou no sofá na sala. Zumira com as mãos e pernas tremendo caiu na poltrona ao lado.

– Ocê meu fi, tens que fugir! –  Colocou Zumira suspirando e baixinho.

– Jamais! – Sentenciou Manoel.

O céu se fecha.  A ventania do lado de fora se intensifica. Vem vindo tempestade. A esperança de Zumira é que não chegue no alto da serra.

Zumira e Manoel se levantaram quando escutaram o som de cavalos. Manoel sentia seu corpo gelar. Olhou em direção onde estava Miro. Zumira voltou a tremer forte. Saíram a porta. Cavalos se aproximam, cerca de cinco homens entram na propriedade. Adamastor vem de fora no banco da carruagem preta.

 – Tão bêbado que não conseguem nem muntar em um cavalo! – grita Zumira.

Manoel, espera de peito aberto e sem notar que está sem camisa na porta do casarão. Olha na expectativa da porta da carruagem se abrir violentamente. O que não acontece. As pedras do calçamento de entrada fazem barulho mesmo frente a ventania. Do alto do casarão se vislumbra o céu tempestuoso na vila com raios cortando o céu. Os cavaleiros não continuam a aproximação ao casarão.

– Estão de guarda – Pensa Manoel.

– Por que essas cabeças baixas oceis deviam ter vergonhas! – Esbraveja uma Zumira afoita.

Adamastor largou o grupo e pulou no chão e foi até Zumira sem nem olhar para Manoel. Falando baixinho. Manoel continua com o olho fixo na porta da carruagem que permanece fechada.

– Que isso homem? –  Única frase que Manoel consegue captar da comunicação. Mas logo Zumira berra agora com alegria.

– O DEMONIO MORREU, O DEMONIO MORREU, O DEMONIO MORREU.

Zumira regalou os olhos e começou a gargalhar. – Bendito seja nosso senhor! E Correu para abraçar Adamastor. Olhou para o atordoado Manoer. E disse venha vamos para dentro. Abraçando o Sinhozinho confuso.

– Vosso pai, me escorraçou pela demora e disse que viria a cavalo solo. Muntou cachaçado no baio que se inspanto com os foguetes dos ciganos caiu no portão da Serra. Caiu que a dentadura inficou no céu da boca do troço. Tá pior que vivo! – Contou Adamastor.

– Manoel escutou um assobio. Olhou para as portas abertas da cristaleira e viu a cortina da janela esvoaçando. Riu sentiu-se tranquilo.

– Manoer cadê vossa camisa vai apanhar friagem? – Questionou Zumira.

– Nem sei Zumira. Imagino que no meu quarto. Vou vestir alguma por agora. – Concluiu Manoel. Sentou na escada antes de subir para o quarto e perguntou olhando nos olhos de Zumira que misturava um amor e ódio jamais demonstrado antes por sua segunda mãe.

– Sabias que eu seria assim?

– Bão assim não!

***

No cemitério que ficava nos fundos do casarão, Zumira escarrou na foto do túmulo que já havia sido feito a mando de Reia para Crones. Zumira foi ao fundo onde os empregados são enterrados tirou uma rosa amarela do bolso da saia e jogou sobre a vala dos empregados. Onde os ossos de seu filho haviam sidos jogados. Um vento soprou seu cabelo encaracolado e trouxe um perfume dos campos floridos de café.

Patrocínio – MG, 2020.

Em uma rua, pai e filho se preparam para atravessar.

– Pai quem foi Manoel Damas? – Uma criança aponta para uma placa de rua.

– Ahh sei lá menino; anda logo!

Chapeuzinho Vermelho e o Lobo mau

Por Thainá Gonçalves

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Há muito tempo… Ou é melhor começar com era uma vez? Não sei, mas não importa.

O que nos interessa é que havia uma garota muito apegada a uma capa vermelha, estava sempre com ela, por isso passaram a lhe chamar de Chapeuzinho vermelho, a capa lhe foi dada por sua vó, que não imaginava o sucesso que a capa faria quando a trouxe de fora da aldeia para a garota. Acontece, que rapidamente a capa virou febre e já não era mais possível identificá-la pela capa vermelha, já que a maioria das garotas de sua idade tinham uma igual.

Ao perceber que já não era mais a única, a garota perdeu o encantamento pela capa, raramente a usava, porém aconteceu que em uma dessas vezes, ela foi elogiada pelo Lobo. Ah, o Lobo… Ele sim era exclusivo, usava um casaco feito de pele de lobo, tinha aproximadamente sua idade, olhos claros e um sorriso estonteante. Desde aquele dia passou a acompanhar Chapeuzinho vermelho até a casa de sua avó, sempre lhe fazia perguntas engraçadas, como por exemplo, se ela já teve namorado, ou o que ela achava dos meninos, ela ria e quase nada respondia.

Um dia sua avó pegou uma gripe terrível, como de costume sua mãe lhe mandou levar pães e folhas para chá para sua avó, porém lhe alertou “cuidado com o Lobo, ele é traiçoeiro”, ela nem escutou, confiava no lobo, ele lhe dava as flores mais bonitas do bosque e ainda a acompanhava para que nada de ruim a acometesse.

Ela fez questão de colocar sua capa vermelha e até passou um batom – vermelho – de sua mãe escondido. Próxima ao bosque, ela se surpreendeu ao não encontrar o lobo, ficou chateada, mas como tinha que levar a cesta a sua avó, prosseguiu seu caminho distraída. De repente de longe avistou o casaco… Pele de lobo, estava próximo a uma árvore a garota foi saltitante até lá, embora não tenha entendido o por que ele esperara tão longe dessa vez, até se aproximar e ver que contra a árvore havia uma garota com a capa igual a dela, ele estava com a boca rente ao seu pescoço, parecia devorá-la, ela por sua vez parecia sucumbir.

Chapeuzinho vermelho se afastou devagar com lágrimas nos olhos e seguiu até a casa de sua avó que nem estava longe. Ao chegar à casa de sua avó, desabou em lágrimas no colo da senhora que tossia e espirrava sem parar. “Aposto que foi o lobo, nós avisamos que ele é perigoso, está sempre a comer meninas inocentes por aí”, disse a senhora.

O problema não era ele devorar garotas, o problema era não ser ela a garota, pensou Chapeuzinho Vermelho, mas achou melhor não externalizar.