Um conto de Thainá Pereira Gonçalves
Sem se dar conta de que era morte, se apaixonou infinitas vezes. É que ela nunca soube a sua origem, também nunca se esforçou para saber, acreditava ser memória ruim. O fato é que ela sempre esteve lá. Bem, nem sempre. Sempre desde que se lembra. Existem tantas lendas sobre a morte e sobre ceifeiros, em tantas culturas, e o que pouca gente sabe é que nem sempre a morte se sabe morte.
Uma tragédia sáfica: a morte não é ossuda, não usa capa preta, nem carrega um cajado. Não essa, as demais não interessam. É alta, possui longos cabelos pretos, pele escura e perfeita como dos próprios Orixás, lábios carnudos que requisitam um beijo com urgência, olhos profundos como o abismo e usa um vestido vermelho como o sangue.
Em algumas crenças a morte define o destino do indivíduo, podendo até mesmo enganá-lo para levá-lo; em outras, ela apenas corta o vínculo com a vida e carrega seu desígnio até o destino final. Bobagem! Num minuto ela sequer sabe que a vítima existe, no outro, por um chamado silencioso e imperceptível da vida, lá está ela diante de uma pessoa sem saber o porquê. Ao menos no início, após anos de profissão, ela sabe exatamente a razão de estar diante de uma pessoa viva.
O problema é que os ceifeiros simplesmente surgem, não se sabe por ordem de quem ou de que forma, mesmo eles jamais obtêm essas informações. O fato é que surgem de acordo com a taxa de natalidade do planeta terra e são jogados aqui como nascem os seres humanos – sem saber de nada e muito menos quem são. A morte, não conhecedora da sua identidade, se deixa intoxicar por sentimentos humanos. Ficam adormecidas até que chegue o momento de uma das pessoas da sua lista deixar o mundo físico, nunca chegam no último minuto, chegam com, no mínimo, duas semanas de antecedência para que o ser humano não parta assustado com alguém desconhecido, precisam exalar confiança antes da hora da partida.
De volta à ceifeira pisciana, ela demorou se notar morte e tinha uma queda por mulheres bonitas. Talvez por artimanhas da vida, talvez por coincidência, demorou ter homens na sua lista, assim, estava dado o desastre. Talvez você não saiba, mas a empatia faz parte da morte. Sentir o que sente o seu humano é fundamental para que, dessa forma, seja capaz de melhor lhe acolher em suas incertezas. Se não forem cuidadosas, as mortes sentem mais que o próprio humano em seu momento final.
Seu primeiro chamado, sua primeira humana, foi uma jovem de 22 anos, suicida, andava sempre na corda bamba da vida-morte-vida. Uma garota franzina, branquela, de olheiras fundas e cabelo preto, curto, de franjinha. Quando com grandes propensões à morte, os humanos podem ver seus ceifeiros dias antes do desastre, algumas vezes até meses.
Quando Cecília viu a sua ceifeira, se afeiçoou rapidamente. É comum com os suicidas, a parte deles que deseja morrer reconhece a morte de imediato, mesmo que conscientemente eles não a percebam. A morte, sem ter consciência de si, sentiu no ínfimo do seu ser o afeto da garota e retribuiu. Trocavam olhares distantes com o coração titubeando (ao menos o de Cecília).
Quando, enfim, trocaram palavras, não se importou quando a dama de vermelho disse “não sei” como resposta à pergunta “como se chama?”. Não notou que a mulher usava sempre o mesmo vestido (raramente os humanos notam esse detalhe, seus olhos foram criados para apagar a relevância de todo o resto). Decidiu que a morte combinava com Eleanor, e assim lhe chamou. A ceifeira carregou esse nome para sempre no buraco que há em seu peito.
Como em uma roda-gigante, rapidamente estavam lá em cima: no ápice da paixão. Sem saber exatamente o que fazia, beijou Cecília com delicadeza e… Nada. Escuridão. Esse é o beijo da morte, o doce beijo da morte, ela sempre dará o primeiro passo, mesmo sem saber que essa é a sua missão. Ao beijar seu alvo, imediatamente o sujeito cai no chão sem vida e na mesma velocidade, sem ter tempo de ver o corpo no chão, os ceifeiros voltam ao sono profundo até o próximo chamado.
Acordou um tempo depois, não se sabe a contagem certa em dias humanos, sentia um peso por dentro como se tivesse perdido um pedaço de si. Lembrava de Cecília, lembrava do beijo, não lembrava de mais nada. Tampouco que Cecília estava com uma corda do pescoço na hora do beijo. É que à morte não é permitido ver as causas que a levam até o seu escopo. Agora estava em um cenário completamente diferente, estava no meio de uma mata, agora os seres humanos tinham outros hábitos e a mulher que lhe chamou a atenção tinha em torno de 50 anos e um vírus de gente branca. Não confiou tão rápido nela. Parte dessa desconfiança se dava ao fato de que a ceifeira não estava completamente empenhada, 50% dela estava embasbacada com a beleza da mulher indígena, 50% ainda tentava entender o que aconteceu com Cecília.
A atração da quase morte de Uyara foi mais forte, não mais não possuía um nome, se apresentou como Eleanor. Ouvia as histórias de grandes guerreiros e de deuses poderosos. Via em Uyara um poder invejável, uma potência de vida que ela não era capaz de compreender. No crepúsculo da manhã, ao pé de uma cachoeira, suavemente passou o braço pela pele nua da cintura de Uyara, que enlaçou o seu pescoço com os braços como quem não soltaria jamais. Mantiveram os olhares firmes, quase que em um duelo, como se medissem quem tinha a maior força de não cair. Eleanor a beijou.
Ausência de luz.
E assim se repetiu – em tantos lugares, de tantas formas, com tantas mulheres – de novo, de novo e de novo. Até que ela desconfiou. Não que era a morte, isso não, mas que perdia quem amava quando seus lábios tocavam outros disponíveis a ela. Esteve na França, no Brasil, na Índia, na Alemanha, na Argentina, na Nigéria, na Somália, na Lituânia, na Finlândia e em tantos outros países. Começou a notar o padrão que a sua “vida” passava a existir quando desejava uma mulher.
Agora, no Rio de Janeiro, com mais noção da vida humana, não apenas acompanhou Laura. Ela se esforçou para ver além do véu, além do ímã. Viu nascimentos, brigas, romances, emoção por homens correndo atrás de uma bola, pessoas fingindo viver uma vida para que outras que não estivessem vivendo a própria pudessem ver… Viu sexo. Foi a coisa mais precisa e leal que viu desde que começou a notar, ficou intrigada, mas não tinha importância. Não ainda.
Laura. Uma menina linda de riso fácil. 20 anos, dois filhos pequenos, cursa fonoaudiologia, trabalha cuidando de uma senhora num bairro nobre, mora na favela. Laura, muito atenta, não demorou a notar Eleanor pelo seu bairro, mas no dia em que comentou, sua mãe disse “não vi ninguém assim aqui, não. Será que é madame procurando empregada? Zefa, mãe do Felipe tá precisando”. Laura não respondeu, mas estava cabreira com a figura da mulher melancólica.
A ceifeira ainda não tinha se notado morte, apesar disso, se sentia cada dia mais atraída à Laura, mesmo tentando resistir. Não queria voltar a sumir e se perder de si, da vida. Certa noite sem lua, encostada em muro perto da casa da sua missão, Laura a abordou. Embora intrigada, não foi grosseira, “você parece perdida. Está bem?”. Ela não tinha uma resposta. Estava bem? O que era exatamente estar bem? Perdida, com certeza, estava. Acenou que sim com a cabeça. Laura não quis incomodar a mulher silenciosa, deu um sorriso sincero com as covinhas à mostra e foi para casa. Pensou que Eleanor era mulher de traficante, só essa explicação justificaria uma mulher tão bonita, tão bem arrumada e tão triste.
Em outra noite mal iluminada, quem estava triste era Laura. De forma quase automática, a morte lhe perguntou se estava bem quando a viu passar. Laura não costumava conversar com estranhos, mas tombou num longo desabafo sobre o trabalho e a maternidade. Como alguém que tinha a mesma mente que ela, a ceifeira a compreendeu e disse tudo que ela queria ouvir. Se encontravam todos os dias no mesmo lugar, a mulher viva com suas queixas da vida, a mulher sem órgãos, presa entre os dois mundos, se queixando da ausência de memórias e das mulheres que perdeu pelos tempos incontáveis como grãos de areia.
-E se você for a morte? – Laura não titubeou em perguntar.
Eleanor estremeceu.
-Não… Não posso. Não devo ser. Não quero ser.
E não disseram mais nada. Laura com medo de estar perto da sua derradeira hora. A ceifeira com medo de simbolizar o momento final de mulheres a quem ela julgou amar. Não se viram por uns dias, todavia o destino é implacável e o momento estava chegando. Observava de longe o cabelo-juba de Laura, a pinta acima da boca, os seios sob a blusa, lembrou do “sexo”.
Laura, de tanto medo, fez um seguro de vida. Contou para a mãe sobre as conversas com a desconhecida. A mãe a levou no terreiro e mandou fazer um descarrego, mas toda noite Eleanor estava lá. Quando é hora, não adianta correr, desviar o olhar ou mudar o caminho. Destemida, Laura foi até a ceifeira e perguntou de peito aberto “você acha que veio me levar?”, “não, não acho que eu seja a morte. Mesmo que fosse, eu gosto de você, gosto da vida que pulsa em você, não o faria”. Permaneceram em silêncio, uma do lado da outra, naquela viela de vista privilegiada para o céu.
-Gosta como? – Laura rompeu as cigarras com olhar decidido à entidade ao seu lado.
-Não sei explicar, pareço querer sempre mais de você.
-Então é tipo uma paixão? – A ceifeira nunca havia pensando em uma palavra para o que sentia, talvez fosse, deu de ombros “talvez”.
A carioca enfrentava tanta coisa todo dia para viver, que preferia acreditar que foi uma crença boba que colocou na cabeça, não podia viver com medo da morte e se sentia atraída por aqueles olhos tão pretos e tristes que a olhavam. Deu um passo firme em direção aos lábios de Eleanor, que a parou pousando as mãos de forma firme sobre seus ombros. “Eu não quero arriscar”, a ceifeira agora pensava ser uma ceifeira. “Eu quero”, Laura não queria se arriscar, na verdade, queria era parar de passar o dia pensando que ia morrer. “Se é pra ser, me deixa ter tempo de te lembrar”. Laura não entendeu, mas consentiu.
Parece mentira, mas nessa hora a morte esteve viva. Cheirou o pescoço de Laura como se tivesse um pulmão, se ensandeceu com cheiro de sua presa, passou levemente os lábios sem permitir que escapasse o menor dos beijos. Pressionou seu corpo contra o da garota de forma a sentir que compartilhavam as batidas aceleradas do único coração que havia ali, todos os sentidos de Laura eram seus também, apertava-lhe a nuca, a cintura, a bunda… E Laura, molhada, cedia. Colocou a mão sob o vestido de Laura de forma intuitiva, a tocou onde pulsava e não parou. Os gemidos baixos e roucos estavam abafados em um semi sorriso perto do rosto da ceifeira. Eleanor sentiu o prazer de Laura quando ela feneceu em seus dedos, então a beijou.
Em uma operação policial, Laura morreu numa “troca de tiros”, 10 balas num corpo de 1,60.
A ceifeira, conectada tal qual estava à mulher, sentiu a dor de ser alvejada por 5 segundos antes de adormecer.
Quando acordou, não mais não sabia quem era. Se é que isso é possível, decidiu não mais se “apaixonar”. Continuou a coletar almas, agora não mais perdida de si, sabia quem era e para onde retornaria. Nunca mais sentiu nenhuma mulher como se permitiu naquela rua estreita do Rio de Janeiro. Vaga pelo mundo com nomes femininos cravados na memória como facas no crânio. Uma linda mulher triste. E assim perdura a tragédia sáfica mais silente dos tempos.