Eros pandêmico ou pequenos ensaios sobre a sofreguidão

Um conto de Luciana Borges

Ámame otra vez/ si te atreves” [Arca]

[como se fora a mulher de Lot]

olhou a tela do celular.

o identificador facial não reconhecia seu rosto com a máscara. digitou o código.

de fato, não devia ir. ainda hoje havia lido mais notícias sobre o aumento dos casos na cidade, as mortes, a necessidade de manter o isolamento, o perigo de.

sucessivas piscadas de luz na tela, para não deixar seu cérebro se distrair do tormento. ei, você não vem? e um emoji fofo de coração partido. leu por fora para não marcar mensagem lida, tirou a máscara, sufocava, precisava pensar. desde o início da pandemia que nada, já estava seca, já estava esquecendo o que era contato com outro corpo. e aquele boy era um velho conhecido, crush habitual, não era nenhum novato do tinder. tá certo que já tinha uns meses que tinha sumido e tinha ressurgido da tumba no meio quarentena mas quem se importa não é mesmo. ela precisava dar. e ele estava bem, tinha garantido que não tinha sintoma e que no trabalho ninguém estava doente. outra piscada na tela. dessa vez um nude!

mas era loucura, devia mesmo esperar, não ia morrer por uma foda. mais de mil mortos todo dia. ela não queria ser um desses mortos dos próximos quinze dias. mas se ela não fosse e depois pegasse covid de outra forma? ninguém poderia saber se. aí além de tudo ia morrer sem um pingo de prazer, oh céus, ela não merecia. que merda ter lido todas aquelas teorias sobre orgasmo, morte, eros, thanatos, blá blá blá.

pensou em pedir que ele viesse e se livrava de se aventurar na rua. mas ele tinha era moto, aquelas horas ia acabar vindo de uber e aí sim ela entraria nas estatísticas de verdade.

olhou de novo a tela do celular. dessa vez apagada. respirou fundo.

pegou a bolsa, as chaves, colocou a máscara, fechou a porta e entrou finalmente no carro. dane-se, é só passar álcool gel.

***

[quando fevereiro chegar]

conheceram-se no protesto, de máscara, ambos. a dele, Coringa, a dela, Dalí.

os olhos dele sorriram, os dela também. falaram sobre como não deviam estar ali por causa do contágio e tal, mas a coisa estava séria né? precisavam fazer algo. apesar de.

foram caminhando e as coincidências muitas. aquele arrepio esquisito das primeiras vistas. ou quase vistas, no caso. o rosto dele ruborizou com um pensamento que lhe fez as calças mais justas, mas ela não viu. ela mordeu o lábio com força até sentir gosto de sangue, e roçou uma coxa na outra, mas ele também não viu porque a máscara e as bombas de gás e o choque.

palavras de ordem gritando nas bocas por trás do tecido, correram e sonharam ser o carnaval, quando se podia beijar qualquer um, arrastar para um canto escuro e trocar fluidos vários no mundo pré-apocalipse. 

***

[status de relacionamento]

casados há vinte anos, finalmente ninguém estranhava que estivessem sempre a pelo menos dois metros de distância e só trepassem sem beijos e abraços, afinal, não se deve brincar com esse vírus maléfico.

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Conto originalmente publicado na Revista Ruído Manifesto, em junho de 2020: http://ruidomanifesto.org/pandeprosa-o-total-de-mortes-nao-e-mais-divulgado/

10 respostas em “Eros pandêmico ou pequenos ensaios sobre a sofreguidão

  1. Como sempre, cirúrgica com as palavras…
    Jurei que algo trágico estava por vir em decorrência desse encontro proibido haha”
    mas como ela diz, morrer sem um pingo de prazer não dá… gozando, pelo menos, morro feliz.

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  2. Maravilhoso, atual, dilacerante. Abordando esse contexto de pandemia… Como ficam os afetos, os desejos, o sexo? Seria muito triste morrer por uma foda? Kkk Saudades de um carnaval e desse mundo pré-apocalíptico.

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  3. Luciana, o primeiro conto me fez lembrar de quando eu estava doente com o “vírus” e meu namorado me mandava mensagens … kkkk … eu so conseguia pensar será que ainda terei mais uma foda com o meu boy? Estava morrendo de medo de morrer … kkkkkkkk.
    Adorei os contos!!!

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